Morte ao macho ou morte ao homem?

A pandemia revelou que governos liderados por mulheres têm se destacado no seu combate. Países como Noruega, Islândia, Alemanha e Nova Zelândia são exemplos de eficiência na gestão de políticas públicas que busquem mitigar os efeitos negativos da crise sanitária que já matou centenas de milhares de pessoas em todo o mundo.  

Diante da exaltação do papel institucional feminino em artigos de jornal e em postagens nas redes sociais, resolvi dar a minha opinião. Escrevi que sou feminista. Que todo homem decente tem a obrigação de ser feminista. E que é por isso que não podemos cair na armadilha de achar que países governados por mulheres, por serem mulheres, estão combatendo a pandemia de forma mais eficaz. Esse tipo de afirmação, conclui, era um machismo com sinal trocado. 

E por que seria machismo com sinal trocado? 

Porque a compreensão de um bom governo pura e simplesmente pela liderança de uma mulher significa naturalizar, praticamente condicionar biologicamente a bondade feminina, tanto quanto a maldade masculina. Mulheres seriam essencialmente bondosas, altruístas, solidárias, empáticas, amorosas. Homens, por outro lado, seriam egoístas, individualistas, maldosos, belicosos, rancorosos. Ao abandonarmos a ideia básica antropológica de que os papéis de gênero são socialmente construídos, acabamos por reforçar estereótipos - e, no caso masculino, estigmas. Em resumo, o "ultramacho" e o "sexo frágil" são, antes de tudo, expectativas sociais com as quais concordamos e nas quais nos enquadramos ou, pelo contrário, contra as quais nos rebelamos e as ressignificamos.  

Tenho me posicionado explicitamente a favor do movimento feminista. Dediquei alguns textos deste blog - "Eu sou mulher", "Mulheres", "O machista envergonhado", dentre outros - à defesa da ideia de que o lugar da mulher é onde ela quiser e à reinterpretação do papel social que cabe ao homem, tomando a mim mesmo como exemplo, chamado por minha esposa, carinhosamente, de "minha esposa dos anos 50" exatamente por exercer certas atividades cotidianas que, não faz muito tempo, eram exclusivamente femininas. Apesar disso, fui acusado de prestar um desserviço à causa feminista, de querer ensinar o padre a rezar a missa, e aprendi também que não é possível um homem ser feminista porque nunca sentirei na pele a violência machista. É, portanto, uma impossibilidade cognitiva.  

As pautas identitárias são, em essência, democráticas e democratizantes porque advogam a igualdade de direitos socioculturais a grupos historicamente marginalizados, como os indígenas, os negros quilombolas, as mulheres e os gays. No entanto, a fragmentação e afirmação de múltiplas identidades vieram acompanhadas de um muro simbólico entre estas mesmas identidades, representadas especialmente pelo que se chama de “lugar da fala”, definido pelo filósofo e antropólogo Antonio Risério como um "expediente fascista típico do identitarismo, em sua ânsia de calar a diferença, silenciar a outridade (...) feito sob medida para eliminar dissidências", uma "espécie de guilhotina ideológica, destinada a cortar cabeças genital ou cromaticamente diferentes ou política e ideologicamente discordantes". 

Neste mundo de identidades ilhadas e egoístas, incapazes de construir pontes, de estabelecer um discurso comum de luta pelos direitos humanos, a solidariedade torna-se praticamente inviável. Judeus falam por judeus, negros falam por negros, brancos falam por brancos, gays falam por gays, mulheres falam por mulheres. Um branco nunca pode falar por um negro e um negro nunca pode falar por um branco, é uma questão de autoridade moral, de ser ou não ser parte do grupo do qual se fala. Falar COM, sim; falar POR, não. 

O “lugar da fala”, da forma como tem sido exercido, parte do pressuposto de que a identidade afirmada é homogênea, experimentada e compartilhada igualmente por todos os membros. Ignoram-se narrativas dissonantes do “nosso grupo” e generalizam-se estereótipos e estigmas do “outro”. A construção de um “tipo ideal” interno facilita, por outro lado, a identificação do “inimigo” que deve ser combatido. Um outsider, incapaz de entende-lo e de colocar-se no lugar do outro porque o outro assim decidiu, não pode solidarizar-se com ele e tampouco defende-lo em situações extremas.  

Neste contexto, onde impera a fé fundamentalista na diferença naturalizada, cada um sabe onde lhe dói o calo e pouco se lhe importa onde dói o calo alheio. Cada um no seu quadrado. Também fica claro que quem se encontra na posição de "opressor" deve ter a voz cassada - ou ridicularizada, no meu caso, por ser homem -, explicitando o que Risério entende como o paradoxo da "inclusividade excludente".  

Eu juro que gostaria de pensar como quem me criticou. Afinal, ser dono de casa cansa...  

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