Quando fui morar com a
Renata num apartamento de quarto e sala na aprazível Rua Paissandu, ornamentada
por belas palmeiras imperiais que, dizem, orientava a Princesa Isabel a não
perder-se entre sua residência, o Palácio Guanabara, e a praia do Flamengo,
houve uma trilha sonora. Entre caixas e mais caixas, o vazio de móveis e o
início de uma vida juntos, tocava uma velha canção do Roberto Carlos, “O portão”.
Lembro-me como se fosse hoje de estar debruçado na janela da sala, que dava
para a parte interna do edifício, último apartamento do quarto andar que
recebia a visita de macaquinhos em busca de comida, e ouvir o rei dizer que chegava
em frente ao portão e o cachorro sorria-lhe latindo.
Tudo estava
igual como era antes
Quase nada se
modificou
Acho que só
eu mesmo mudei
E voltei
Eu voltei
agora pra ficar
Porque aqui,
aqui é meu lugar
Eu voltei
pras coisas que eu deixei
Eu voltei
É até meio irônico, eu não
voltava coisíssima nenhuma já que nunca havia partido. Junto com “O portão”,
gosto também de outras canções da primeira parte da sua carreira, como “As
curvas da estrada de Santos”, “Quero que vá tudo pro inferno” e, apesar de ateu
convicto, adoro “Todos estão surdos”, um clamor aos céus para que certo cabeludo
volte o mais rápido possível.
Tanta gente se esqueceu
Que a verdade não mudou
Quando a paz foi ensinada
Pouca gente escutou
Meu Amigo volte logo
Venha ensinar meu povo
O amor é importante
Vem dizer tudo de novo
Há outro lado do Roberto
Carlos, muito menos glamoroso que, definitivamente, não me atrai e quero longe
de minha memória e minha história. Não é novidade para ninguém que ele
estabeleceu relações no mínimo “cordiais” com a ditadura militar instalada com
o golpe de 1964. Recebeu a concessão de uma estação de rádio em Belo Horizonte
durante o governo de João Baptista Figueiredo, o último ditador; foi
condecorado com a Medalha do Pacificador, concedida a militares e civis que, de
alguma forma, contribuíam com o Exército; recebeu a Ordem do Rio Branco, por
serviços prestados à nação; ocupou cargos em conselhos do governo; livrou-se da
censura com a ajuda do ministro da justiça (sim, com minúsculas) e também foi
contratado pelo Exército para vários shows em homenagem ao que eles chamam anedoticamente
de “revolução”. Era convenientemente “apolítico”. Recentemente, numa entrevista
coletiva em 2020, disse que Bolsonaro era “bem intencionado” e que torcia para
que o presidente da república fizesse aquilo que pretendia fazer conforme
prometido.
“Sociedades complexas,
indivíduos complexos”, ensinava-me o antropólogo Gilberto Velho, meu querido orientador
durante o doutoramento no Museu Nacional. Exibimos inúmeras máscaras sociais a
depender dos espaços simbólicos em que circulamos. Estamos permanentemente negociando
nossas identidades com os interlocutores, compartilhando experiências,
produzindo e reproduzindo sentido e significados, nossos lugares no mundo. Confesso
que, nem sempre, é tarefa fácil separar o joio do trigo, isolar de nossas vidas
partes do outro que desgostamos ou, até, não suportamos. Consigo guardar numa
caixinha de emoções o Roberto Carlos da Jovem Guarda e preservá-lo do lado obscuro,
conivente ou apoiador de regimes de exceção? Consigo separar o artista do
sujeito político? Dois pesos e duas medidas? Ou devo cancelá-lo pura e
simplesmente?
Permanecendo no terreno
musical, o que posso dizer de Eric Clapton? Já escutei “Layla” para lá de
seiscentas vezes. A versão ao vivo durante o Live Aid de 1985, num estádio
lotado, é de arrepiar. No entanto, “deus” – a frase “Clapton is god” apareceu
pichada num muro de Londres em meados da década de 60, quando ele era parte dos
Yardbirds – é um negacionista da vacina contra o coronavírus. Sua última
declaração estapafúrdia é a de que a população mundial sofreu uma “hipnose de
formação de massa” para aderir à campanha de vacinação, embora tal expressão
sequer seja reconhecida por acadêmicos do campo da psicologia. E agora? O que
fazer?
E Richard Wagner e seus
pendores antissemitas? E a Cavalgada das Valquírias? E Tannhäuser? E Tristão e
Isolda? E o Wilson Simonal, acusado de planejar, com dois agentes do DOPS,
extorsão e sequestro de um ex-funcionário de sua produtora e de ser,
posteriormente, informante do SNI – Serviço Nacional de Informações – nos anos
de chumbo? E “Meu limão, meu limoeiro”? E “Nem vem que não tem”? E “Sá Marina”?
Cada um de nós sabe, ou
supõe saber, o limite para a convivência com a inexorável complexidade humana
do outro, para o bem e para o mal. O julgamento é subjetivo, embora não menos
legítimo. No meu caso, por via das dúvidas, sempre terei a postos, na mesinha
de cabeceira, o Chico Buarque.
Comentários
Mas enfim, feliz com o retorno talvez pela 1ª vez não concorde com seu "cancelamento": Se for assim, Vc teria que cancelar o tricolor Chico Buarque e o botafoguense Zeca Pagodinho afinal seu queixume com o vascaíno Roberto Carlos é por conta de política?
SRN, Antenor