O direito de ser anti-Marcelo

 

Durante vários anos, uma amiga de infância de minha irmã a convidou para passar a noite de Natal com sua família. Ficávamos em casa eu, meu pai e minha mãe como se fosse um dia qualquer, sem maiores dramas ou sentimento de exclusão. Nunca me passou pela cabeça a ideia de que éramos “menos brasileiros” porque um monte de brasileiros comemorava, com um saboroso jantar (eu adoro rabanadas) e farta distribuição de presentes, o nascimento daquele que chamam de filho de deus. Eram brasileiros, como nós, que acreditam em certas coisas que nós não acreditamos. E tudo bem, como deve ser.

Lembro-me, também, de estar no carro dos meus pais seguindo para a casa dos meus avós maternos, em Copacabana, para comemorarmos uma das festas judaicas. Parados no sinal, olho para o lado e vejo uma criança em outro carro, talvez da mesma idade, rindo de mim. Eu estava com a kipá (solidéu) na cabeça, embora naquele momento não tivesse claro o significado de minha identidade judaica (descobri-me judeu ateu anos depois) e a usasse como forma de marcar o orgulho do pertencimento étnico. Imagino que a risada, vinda de uma criança, tinha mais a ver com o estranhamento de um hábito do que um preconceito arraigado. Era um brasileiro judeu (ou um judeu brasileiro?), diferente de minha avó materna, que se dizia judia nascida na Polônia, não judia polonesa ou polonesa judia. Esta diferença na forma de se ver diz muito sobre como interpretamos nosso lugar no mundo.

Na Copa do Mundo de 1986, disputada no México, o Brasil enfrentou a França nas quartas-de-final. Zico contra Platini. Era uma tarde ensolarada no Rio de Janeiro. A seleção brasileira tinha uma boa equipe e boas chances de seguir adiante. Empatados em um a um, passados não sei quanto tempo do segundo tempo, pênalti para o Brasil. Zico foi o escolhido para bater e o goleiro francês defende a cobrança. Começo a chorar copiosamente. O jogo é definido por pênaltis e o Brasil acaba eliminado pelos franceses. Sofri muito naquele dia.

Quatro anos se passaram e, na Copa do Mundo de 1990, na Itália, o Brasil enfrentou a Argentina nas oitavas-de-final. Assistimos ao jogo na casa dos meus avós maternos. A seleção brasileira desperdiçou uma infinidade de oportunidades de gol e, como diz o ditado, “quem não faz leva”, faltando menos de dez minutos para o final da partida, Maradona dá um passe magistral para Claudio Caniggia, que dribla seu xará Claudio Taffarel e acaba com o sonho de seguirmos adiante. Chorei novamente. Naqueles momentos, na dor da derrota, sentia-me plenamente brasileiro, sofria junto com outros milhões e milhões que se viam espelhados naqueles onze jogadores. Havia identificação com aquela camiseta “canarinho”. Futebol e brasilidade.

Um pouco mais velho, passei a curtir os blocos de carnaval que saem pelas ruas do Rio de Janeiro, misturado (e suado) com outros milhares de foliões a cantar as tradicionais marchinhas. A praia, também, sempre foi um lugar de exercício da brasilidade carioca, assim como a ida ao Maracanã para ver o meu querido Flamengo.

A maturidade intelectual me fez questionar minha própria identidade judaica, minha brasilidade e a forma como as duas dialogam. Sempre me incomodou o discurso endógeno do antissemitismo à espreita, pronto a nos atacar, daí a necessidade de fortalecer os muros da “comunidade”, veja o que aconteceu na Alemanha pré-guerra, quando os judeus se viam integrados à sociedade alemã e se deram mal. A alternativa sempre me pareceu pior, o fechamento das fronteiras étnicas através da construção de muros simbólicos, nos apartando do mundo externo, e o uso político de tal discurso.

Meu lema passou a ser “menos muros, mais pontes”. Passei a incorporar a figura do “judeu errante”, não mais um estigma, sim um flaneur que circula pelo mundo absorvendo as boas experiências camaleonicamente. Casei com uma não-judia, o que não me deixou menos judeu, tampouco meu filho. Os três passamos a curtir, juntos, os blocos de carnaval e comemoramos as festas judaicas em casa. Nunca nos vi como “casal misto” porque esta categoria carrega em si, a meu ver, uma conotação negativa que releva a diferença, relegando, a segundo plano, as inúmeras confluências que podemos ter. Sociedades complexas, indivíduos complexos, identidades múltiplas.

Não me sinto ameaçado em minha existência enquanto judeu brasileiro (ou brasileiro judeu?). Confesso, entretanto, que, de uns tempos para cá, uma pulga atrás da orelha passou a me incomodar e não é para menos.

O atual presidente da república já afirmou que a “minoria” deve curvar-se à “maioria”, em referência à maioria cristã, aparentemente desconhecendo o significado do termo cidadania, este sim “maioria”. Um ex-ministro, demonstrando ignorância histórica ou má-fé, afirmou taxativamente que o nazismo era (ou é) ou ideologia de esquerda, maculando a memória das dezenas de milhões de pessoas trucidadas pela sanha nazista, um monte de comunistas, inclusive. Um ex-secretário de Cultura plagiou discurso de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, usando, como pano de fundo musical, uma das obras de Richard Wagner que o ditador alemão mais apreciava. Membros do governo já apareceram em vídeo tomando copos de leite, gesto associado a grupos supremacistas brancos norte-americanos. A Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República postou, em seu Twitter, uma frase inspirada naquela que recebia os prisioneiros no do campo de concentração de Auschwitz - “O trabalho liberta”. Nos últimos três anos, o número de grupos neonazistas cresceu 270% no Brasil.

No episódio mais recente envolvendo a pulga, um “digital influencer” defendeu a criação de um partido nazista no Brasil, afinal, qualquer cidadão brasileiro deveria ter o direito de ser “anti-judeu” se honramos, verdadeiramente, o princípio liberal e democrático da liberdade de expressão. Os judeus que lutem por seu direito de existir e que vença o melhor.

Não temos a obrigação moral de gostar de tudo e de todos. Acho que uma característica importante das sociedades modernas é o exercício cotidiano da convivência com o “outro”, o diferente que, muitas vezes, nos desagrada. Esta também é a beleza da diversidade cultural, o caleidoscópio de experiências e manifestações que corroboram a ideia de que a capacidade humana de produzir significado à sua existência é infinita. Conviver com esse estranho não é tarefa fácil, mas é a única possível.

Você não precisa gostar de mim, mas, por favor, não me mate.



Comentários

Sonia disse…
Muito bom o seu texto. A liberdade de expressão deveria ter o limite da incitação ao desejo de morte do outro. Não gostar é uma coisa, querer eliminar alguém é outra!
Unknown disse…
excelente texto Marcelo, devemos primar pela aceitação de todos os brasileiros independente de sua religião ou crença e não pela discriminação
Unknown disse…
Muito bom. Viva a diversisade mas também o respeito à ela.
Por interesse estão deturpando o que seja liberdade de expressão.