“Ser doutor no país dos bacharéis”: o papel da identidade étnica no processo de integração dos judeus à sociedade brasileira (1900-1940)
Em pouco
mais de um século, entre os anos de 1840 e 1942, desembarcaram no Brasil aproximadamente
setenta e um mil judeus, o que corresponde a 1,8% do total de imigrantes judeus
fugidos da Europa em busca de melhores oportunidades no Novo Mundo, na África do
Sul e na antiga Palestina (Rattner,1972). Com relação à nacionalidade dos que
entraram no Brasil entre 1925 e 1942, observamos que os judeus poloneses somam
o maior contingente, seguidos dos alemães (concentrados entre 1933, ano da
ascensão de Adolf Hitler como chanceler alemão, e 1942), dos romenos, russos e
lituanos. A participação percentual dos imigrantes judeus no total de
imigrantes para o Brasil foi mais destacada nos anos de 1936 e 1939, somando 26,7%
e 20,2%, respectivamente, inflada possivelmente pela maior entrada de
refugiados da Alemanha pressentindo a tragédia que se anunciava[1].
O Brasil
acolheu, além dos originários de países europeus, judeus emigrados da Ásia
Menor nas duas primeiras décadas do século XX, fugidos mais por conta da tensão
política presente no Império Turco-Otomano (Síria, Líbano, Grécia, Turquia), despedaçado
após a Primeira Guerra Mundial, do que por dificuldades financeiras, embora a
pobreza estivesse presente entre a comunidade judaica desta área geográfica. O
Brasil se transformou, nos anos 1920, num importante pólo de atração de
imigrantes depois que os EUA e a Argentina estabeleceram sistemas de cotas por
nacionalidade, dificultando a entrada de refugiados judeus. Na década de 1950, um
outro grupo desembarcou por aqui, fugido do Egito, quando o então presidente
Nasser lançou uma campanha nacionalista de cunho xenófobo, retirando a
cidadania egípcia de sua população judaica.
Levando
em consideração os Censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
dos anos de 1940, 1950, 1960, 1980, 1991 e 2000, observamos que a população
judaica brasileira aumentou de cerca de 56 mil na década de 1940 para 86 mil no
início do século XXI, mais precisamente 86825 (vinte mil a mais do que o
verificado na PME de 1998)[2]. Deste total, apenas 509 indivíduos moram em zona
rural, marcando o caráter eminentemente urbano da imigração judaica para o
Brasil.
A
inserção econômica dos judeus: a cidade e o mascate
Vindos, em
sua grande maioria, dos shtetl, das pequenas cidades da Polônia e da Rússia, ou
ainda das grandes metrópoles cosmopolitas da Europa Central, os judeus estavam
acostumados com ambientes urbanos e viviam neles desde a Idade Média. A
concentração em grandes cidades – além de ter suas origens em épocas remotas da
história européia, quando durante séculos lhes haviam sido vedados aquisição de
terras e o cultivo das mesmas – explica-se, também, pelas maiores facilidades
de absorção e integração, tanto do ponto de vista econômico quanto social, que
são oferecidas ao imigrante no ambiente urbano. Nas circunstâncias específicas
do surto urbano-industrial brasileiro, ocorrido após a Segunda Guerra Mundial, este
se concentrou quase que exclusivamente nas duas maiores metrópoles do país, São
Paulo e Rio de Janeiro, e em mais algumas capitais estaduais, tais como Belo
Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e Curitiba. Foram estas cidades, lideradas
pelas duas primeiras, que ofereceram maiores oportunidades educacionais e
profissionais aos imigrantes “ávidos de reconstruírem sua vida” (Rattner,1977:22)
e conquistarem posições de prestígio na sociedade adotiva.
A
inserção econômica típica dos imigrantes recém-chegados da Europa Oriental foi
na atividade de comércio prestamista a domicílio. Essa ocupação era exercida
tanto nas zonas de expansão da atividade agrícola, onde o comércio tradicional
não estava estabelecido, quanto nas zonas urbanas recentes, ainda pouco
servidas, seguindo o exemplo imediatamente anterior e ocupando o vácuo deixado
pela imigração síria e libanesa que já se instalava em pontos fixos de comércio
e indústria ligeira (Grun,1999). Embora alguns judeus tenham mascateado em
meados do século XIX, a prática começou em larga escala com os imigrantes sírio-libaneses
que descobriram que a abolição da escravatura havia criado uma expansão dos
mercados sem um crescimento paralelo do sistema de distribuição de bens.
A
expansão industrial criou na nova classe média, relativamente grande, o desejo
de bens não disponíveis por conta do deficiente sistema de distribuição (Lesser,1992).
Sírios e libaneses carregavam suas mercadorias em mulas através do interior de
São Paulo e do Paraná, enquanto os judeus fizeram o mesmo embora estivessem
concentrados em centros urbanos. A fase mais intensa de imigração judaica, não
só em São Paulo, mas no Brasil de um modo geral, coincidiu com transformações
profundas na estrutura social e econômica do país que, através de um processo
de industrialização passou, nos últimos decênios do século XIX, de uma
sociedade rural-tradicionalista para uma urbano-industrial (Rattner,1977). Este
processo foi acompanhado de vários movimentos migratórios internos que
aceleraram o crescimento das cidades, lócus judaico por excelência. Os
imigrantes acabaram preenchendo os espaços vazios na estrutura ocupacional
brasileira tradicional.
As
atividades de mascateação tinham suas vantagens. Em primeiro lugar, dispensavam
qualquer habilidade específica ou soma significativa de recursos. Começava-se
carregando caixas e malas dos mascates já treinados e mal se aprendiam as
palavras e frases suficientes para efetuar a venda. Como cerca de 35% de
todos os judeus que chegavam da Europa
Oriental eram “sem profissão” e sem qualquer habilidade comercial, tinham pouca
escolha a não ser tornarem-se mascates. À medida que o Brasil se tornava mais
urbanizado, o comércio também crescia, por isso, as oportunidades de ascensão
econômica permaneceram relativamente abertas.
O termo
utilizado pelos imigrantes judeus para a ocupação de mascate era clienteltchik,
palavra iídiche derivada de “cliente” para designar o judeu que ganha a vida
vendendo mercadorias à prestação, de porta em porta, para diversos “clientes”. Geralmente,
era chamado pela vizinhança de “gringo da prestação” e, sobretudo, de “judeu da
prestação”. Lewin (1997) distingue o mascate do clienteltchik por dois fatores:
a área de trabalho e a modalidade de pagamento. O primeiro trabalha
preferencialmente fora dos limites da cidade, ao passo que o segundo trabalha
nos limites da cidade, incluindo os subúrbios. Quanto à modalidade de pagamento,
o mascate vende, predominantemente, à vista, enquanto o clienteltchik o faz à
prestação, derivando daí o tipo de mercadoria que cada qual negocia. O mascate
carrega uma mercadoria de rápido retorno, mais barata porque à vista, enquanto
o prestamista, por conta do retorno a médio ou longo prazo de sua mercadoria, pratica
a “sucessividade da dívida do freguês” (Lewin.1997:83). Ou seja, à medida que o
freguês apresenta no seu cartão uma diminuição substancial de sua dívida, o
clientelchik aplica-lhe nova venda mantendo constante a dívida através da
sucessividade de compras pelo freguês. Sírio-libaneses e judeus parecem ter
sido, então, antes clientelchiks que mascates: eram os “turcos” e “russos” da
prestação[3].
Muitos
imigrantes judeus tornaram-se donos de pequenas oficinas, fabricantes de roupas,
móveis, malhas e sapatos. Em meados dos anos 1930 observa-se no bairro paulista
do Bom Retiro uma concentração de firmas de vestuário, sobretudo fabricando e
comercializando roupas prontas: casacos, coletes, vestidos, camisas, meias, ternos,
chapéus, gravatas, pijamas etc. (Truzzi,2001). Por volta de meados da década de
1940, por exemplo, os judeus quase que monopolizavam o comércio.
Ao
ressaltar o esforço que a profissão de prestamista exigia, o imigrante judeu, junto
com outros grupos étnicos que aqui desembarcaram (como os próprios sírio-libaneses
e os alemães no sul do Brasil e os italianos em São Paulo), se auto-atribuíam
um traço que os diferenciava da população autóctone: o valor dado ao trabalho. A
maioria dos brasileiros não passava de gente acomodada, quase sempre em busca
de um “encosto”, “um cargo público se possível, valendo-se de conexões de
parentes e amigos” (Fausto,1997). A cidadania passa a ser definida em função do
ethos do trabalho presente entre os imigrantes. A existência de enclaves
étnicos, formados pelos imigrantes, prova que o seu papel na sociedade
brasileira não excluía o exercício da identidade étnica. Etnicidade e cidadania
formavam uma díade, conjugadas numa dupla representação da identidade.
O
intelecto enquanto trunfo social: o sonho de ser “doutor”
O
alegado pendor dos judeus para a atividade intelectual foi objeto de reflexão
para diversos pensadores. Werner Sombart, em The Jews and modern capitalism (1982),
não descarta a hipótese da capacidade intelectual do povo judeu vir de
predisposições inatas, raciais, concorrendo para o desenvolvimento da economia
capitalista moderna (tese que contradiz a teoria weberiana sobre a relação
entre a ética protestante e o surgimento do capitalismo moderno). Tal
desdobramento está longe de ser positivo. Ao “racialismo” de Sombart contrapõe-se
o “universalismo” de Sartre, influenciado pelos ideais iluministas de sua terra
natal. A tendência ao racionalismo seria a paixão pelo Universal, um combate a
concepções particularistas que os transformam em seres à parte.
O “amor
bizantino aos livros” (Buarque de Holanda,1989) da intelectualidade brasileira
teria origem em tradições sefaraditas (judeus oriundos da Península Ibérica e
norte da África). Segundo Gilberto Freyre, é possível atribuir “à influência
israelita muito do mercantilismo no caráter e nas tendências do português; mas
também é justo que lhes atribuamos o excesso oposto: o bacharelismo. O
legalismo. O misticismo jurídico. O próprio anel no dedo, com rubi ou esmeralda,
do bacharel ou do doutor brasileiro, parece-nos reminiscência oriental, de
sabor israelita” (Freyre,1936:164). A fuga para a carreira intelectual seria
uma tentativa de fugir ao estigma de povo corrompido pela vida urbana, daí que
os cristãos-novos “vindos da usura, do comércio de escravos e da agiotagem
encontrassem nos títulos universitários de bacharel, de mestre e de doutor a
nota de prestígio social que correspondesse às suas tendências e ideais
sefardínicos” (Freyre,op.cit:165).
A visão
do povo judeu como um povo de sábios e intelectuais era, e continua sendo, de
extrema funcionalidade se pensamos na necessidade de lidar com o problema do
anti-semitismo, ainda que a auto-identificação não tivesse, como no caso dos
imigrantes, correspondência com as “condições de vida objetiva” da época. Identificar-se
como judeu passa a ser socialmente valorizado, constituindo-se num referencial
simbólico importante nas estratégias de reprodução e ascensão social do grupo.
O ethos
intelectual pode ser considerado uma “tradição inventada”. No caso da imigração
judaica, o mito de origem intelectual foi transmitido entre as gerações através
de investimentos afetivos constituintes da identidade, transformadas em
“propriedades sociais relevantes, capazes de explicar e predizer comportamentos,
entre os quais, a escolha do lócus de inserção econômica” (Grun,1997:134). Aceitando
que essa tradição é um efeito de práticas religiosas passadas , ainda que seja
difícil precisar o período de tempo em que foi construída, percebemos um
processo de secularização destas mesmas práticas a partir de convenções e
rotinas, como a valorização da educação escolar e a formação universitária per
se (Sorj, 1997). É bem provável que grupos significativos de intelectuais
leigos judeus não saibam, ou mesmo nunca se interessaram em saber, o porquê da
valorização da educação por parte de sua família ou da comunidade judaica como
um todo, não identificando neste ethos uma característica particular do grupo.
A ênfase
dos judeus na educação acabou deixando muitos avós e pais sem herdeiros para
suas lojas. Os imigrantes projetaram nos filhos (e estes, nos netos) aquilo que
não conseguiram ser e fazer, ou seja, ser um “doutor” no país dos bacharéis. A
escolha pela Medicina, Direito, Engenharia e Economia por parte dos filhos de
imigrantes e seus netos se deve, entre outros motivos, ao fato de serem
“profissões históricas” (Hughes,1971), ou seja, têm uma identidade definida e
um espaço reconhecido na sociedade. Eram as de maior prestígio na sociedade
urbano-industrial no período em que prestaram o vestibular. Já nos anos 1940 o
número de judeus que entravam nas faculdades mais concorridas era significativo
e merecia notícias em periódicos comunitários.
A
mudança para a zona sul da cidade do Rio de Janeiro, para bairros como o Catete,
Flamengo e Copacabana refletia a melhoria nas condições de vida dos imigrantes
e seus descendentes. O padrão habitacional, a localização e o valor da moradia,
se configuram como índices seguros do status social de um grupo[4]. A vida
social numa grande metrópole reflete, através do padrão habitacional de sua
população, a estrutura e os valores da sociedade (Rattner,1977), havendo uma identificação entre o local de
residência e prestígio social de tal forma acentuada que a simples mudança de
bairro pode ser interpretada como ascensão social.
Considerações
finais
O padrão
residencial e o diploma universitário refletiram, ao longo das décadas, a
incorporação dos imigrantes judeus e seus descendentes, filhos e netos, às
camadas médias da sociedade brasileira e, parte deles, ao que poderíamos
classificar de “elite”. As sucessivas crises econômicas que o Brasil viveu e
vive são responsáveis pela perda de poder aquisitivo do grupo, acompanhando as
tendências mais gerais da sociedade brasileira, mas é importante notar que, segundo
os dados do Censo do IBGE relativos ao ano de 2000, que considera o judaísmo
uma religião, os judeus apresentam os melhores resultados tanto no rendimento
quanto na escolaridade: 35,4% ganhavam mais de 20 salários mínimos e apenas 1,8%
recebia até 1 salário mínimo; 99,6% eram alfabetizados e 49,7% tinham 15 anos
ou mais de estudo.
Finalmente,
chamo a atenção para a dimensão política do processo de construção da “judeidade”
brasileira na medida em que a afirmação de uma identidade socialmente
valorizada, por parte dos imigrantes e seus descendentes, é uma luta pelo poder
de definir comportamentos e os ganhos materiais e simbólicos daí decorrentes. Normas
culturais, valores, símbolos e mitos, como o ethos intelectual, são utilizados
na solução de problemas organizacionais, facilitando a luta por uma posição
privilegiada na estrutura social. O grupo passa a ser definido em termos de
interesse, enquanto um “grupo de interesse” (Glazer & Moynihan,1975;Abner-Cohen,1969;1974).
No entanto, o caráter instrumental e pragmático desta abordagem não dá conta da
complexidade e heterogeneidade interna às comunidades judaicas espalhadas pelo
país. Na verdade, devemos interpretá-las enquanto um fim em si mesmas. Numa
sociedade complexa como a brasileira, marcada pela heterogeneidade cultural, a
identidade judaica configura-se, não como sobrevivência do passado, segundo os
advogados do “cadinho de raças”, mas um dentre inúmeros outros domínios
simbólicos por onde o indivíduo circula. Ser judeu, ou deixar de sê-lo, passa a
ser uma escolha e não apenas uma questão de sobrevivência.
[1] Os
dados apresentados nos dois parágrafos encontram-se nos apêndices do livro de
Jeffrey Lesser, O Brasil e a Questão Judaica (1995).
[2] O
judaísmo é considerado uma religião pelo Censo do IBGE.
[3] Como
os imigrantes sírios e libaneses chegavam ao país com o passaporte do Império
Turco-Otomano, eram classificados como “turcos”. Por causa da mesma língua nativa,
da dedicação ao comércio popular, do padrão endógeno de casamentos, da vida
social voltada para dentro da colônia, era mais natural ao restante da
sociedade ignorar as diferenças entre sírios e libaneses e simplesmente fundi-los
nesta categoria maior (Truzzi, 2001).O mesmo acontece com aqueles judeus
oriundos do Império Russo, classificados de “russos”, ainda que fossem de
nacionalidades distintas (como poloneses ou romenos). Mesmo após a extinção dos
dois impérios, os termos permaneceram como meio de identificar os comerciantes,
muitas vezes carregados de sentido negativo.
[4] De
acordo com os dados apresentados pelo último Censo do IBGE (2000), que toma o
judaísmo como uma religião, observamos que os judeus apresentam os melhores
resultados tanto no rendimento quanto na escolaridade: 35,4% ganhavam mais de 20
salários mínimos e apenas 1,8% recebia até 1 salário mínimo e 99,6% eram
alfabetizados e 49,7% tinham 15 anos ou mais de estudo.
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