Virou um mantra repetido ad nauseam pelas últimas gestões do Ministério da Cultura do Brasil a importância capital do orçamento da pasta atingir o mínimo de um por cento relativamente ao orçamento da União. Recorre-se à Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO de modo a legitimar o número cabalístico.Em primeiro lugar, é importante deixar claro que a UNESCO não faz a recomendação mencionada acima. A única indicação nesse sentido é a recomendação de alocar “uma certa porcentagem” para o desenvolvimento cultural, primeiramente colocada no Plano de Ação de Políticas Culturais para o Desenvolvimento, resultado da Conferência de Estocolmo de Políticas Culturais para o Desenvolvimento ocorrida em 1998. O ponto 1 do objetivo 5 do Plano (“disponibilizar mais recursos humanos e financeiros para o desenvolvimento cultural”, em tradução livre) explicita a necessidade de alocar um montante não desprezível para a área da cultura:
Manter ou aumentar o investimento, em nível nacional, no desenvolvimento cultural e comprometer, apropriadamente,um certo percentual do orçamento governamental para este propósito, de acordo com os objetivos gerais de desenvolvimento, prioridades e planos. (grifo meu)
O percentual deve levar em consideração, portanto, as circunstâncias e necessidades particulares de cada país, não existindo, obviamente, um número exato nem parâmetro estabelecido para abranger os Estados Membros da UNESCO, incluindo-se aí o Brasil. O 1% passou a ser amplamente considerado após a adoção da Agenda 21 da Cultura, no entanto, este documento não é da UNESCO, mas da organização de Cidades e Governos Locais Unidos, que o adotou durante o Fórum Universal das Culturas realizado com o apoio da UNESCO em Barcelona no ano de 2004[1]. Diz o parágrafo 50 do documento:
Estabelecer instrumentos de intervenção pública no campo cultural tendo em conta o aumento das necessidades cidadãs relacionadas a este campo, a insuficiência de programas e recursos atualmente existentes e a importância da desconcentração territorial nas atribuições orçamentárias. Também é preciso trabalhar para atribuir um mínimo de 1% do orçamento nacional para a cultura. (grifo meu)
Em artigo anterior, quando expus dados relativos ao consumo cultural pelos brasileiros, extraídos da Pesquisa de Orçamento Familiar – POF do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, fui alertado corretamente para a importância de ir além da frieza dos números, quer dizer, relacionar as perguntas “QUANTO se gasta com cultura?” e “O QUÊ se está consumindo?”. Desta forma, aliamos dados quantitativos e qualitativos, inserindo-os numa perspectiva mais abrangente, de avaliação da política cultural proposta pelo Estado brasileiro. Números em si nada dizem se não sabemos as diretrizes que norteiam a atuação da política pública (Estado, sociedade civil e iniciativa privada atuando em consonância). Este é o segundo ponto: uma vez atingido o objetivo do 1%, o que fazer com os recursos?
Não pretendo apontar os descaminhos ou sugerir encaminhamentos à verba destinada ao Ministério da Cultura do Brasil que, diga-se de passagem, viu seu orçamento de 2011 encolher significativamente. Mas, sim, apresentar alguns números que servem de ponto de partida à resposta da pergunta colocada no parágrafo anterior. Temos o dinheiro, e agora? Alcançar o percentual é, apenas, o início da jornada, que fique bem claro aos gestores da coisa pública.
Apresento, a seguir, os gráficos com orçamentos destinados à pasta da Cultura para nove países latino-americanos. As séries históricas foram colhidas do sítio Sistema de Información Cultural del Mercosur (www.sicsur.org). Em quatro deles (Brasil, Colômbia, Equador, Chile e Argentina) os dados estão disponíveis até o ano de 2009, inclusive; dois deles, até 2005 (Venezuela e Peru); um apenas 2008 (Bolívia); um, até 2008 (Uruguai).
Podemos dividir os nove países latino-americanos em dois grupos. O primeiro é formado por aqueles que canalizam entre zero e 0,5% do orçamento da União para as respectivas pastas da Cultura. Neste grupo encontram-se nada menos do que oito países, desde a Bolívia, cujo investimento público em cultura tende a zero, até Chile, Equador e Venezuela, que reservam cerca de meio por cento de seus orçamentos nacionais ao desenvolvimento cultural de seu povo. O segundo grupo, na verdade, é formado por um representante, o Uruguai, que investe duas vezes mais do que o recomendado pela Agenda 21.
Com relação ao Brasil, ainda que não tenhamos dados oficiais para o ano de 2010, trago um excerto de notícia publicada no site do Ministério da Cultura, datada de 26 de janeiro de 2010. Intitulada “Cultura terá maior orçamento da história: R$ 2,2 bilhões”, a matéria conta que, entre 2009 e 2010, houve um aumento de 64% no montante destinado à pasta e que o aumento da verba é “resultado da necessidade de atingir recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU) de destinar, no mínimo, 1% do orçamento do país à cultura”. A assessoria do então ministro Juca Ferreira informa:
Este orçamento corresponderá (para o ano de 2010), estimativamente, a cerca de 0,7% das receitas totais de impostos totais da União neste ano. Em 2003, quando o governo Lula assumiu, a Cultura recebia exíguo 0,2% dessa receita. Constitui-se, assim, em um ensaio que se aproxima do patamar mínimo para a cultura.
Os dados fornecidos pelo próprio Ministério da Cultura do Brasil com relação ao seu orçamento, na tentativa de alcançar a recomendação da ONU (o que, como visto anteriormente, é um equívoco. Não a recomendação, mas a autoria da mesma), são auspiciosos, porém, não conseguiram alçar o país ao patamar minimamente aceitável para a execução de políticas culturais abrangentes que levem em conta a imensa diversidade cultural nacional. Ademais, os festejados 0,7% não fazem jus à pujança econômica do Brasil, infinitamente superior ao PIB de Venezuela ou Equador, países cujos investimentos em cultura são semelhantes.
Não se trata de representar o “advogado do diabo”, mas a curva ascendente pretendida pelo MinC depende do projeto de país que o governo de plantão se propõe a implantar. Enquanto cultura for vista como um apêndice de questões mais urgentes a resolver, como educação e saúde (como se fosse possível separar educação e cultura), o montante destinado ao desenvolvimento cultural sofrerá o “efeito sanfona”. Os festejos de 2010 darão lugar às lamurias de 2011, quando o orçamento destinado à pasta foi cortado drasticamente, conforme o quadro a seguir (dados retirados do sítiohttp://www.contasabertas.com):
1 | MINISTÉRIO DA FAZENDA | R$ 1.143.454.086.299,00 |
2 | MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL | R$ 290.977.646.844,00 |
3 | MINISTÉRIO DA SAÚDE | R$ 77.417.848.253,04 |
4 | MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO | R$ 72.787.379.113,09 |
5 | MINISTÉRIO DA DEFESA | R$ 62.015.153.979,39 |
6 | MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO | R$ 49.552.600.675,00 |
7 | MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME | R$ 42.997.392.104,00 |
8 | MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA | R$ 25.394.094.925,00 |
9 | MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES | R$ 24.983.458.935,00 |
10 | MINISTERIO DO PLANEJAMENTO, ORCAMENTO E GESTAO | R$ 24.072.292.908,00. |
11 | MINISTÉRIO DAS CIDADES | R$ 22.089.151.350,00 |
12 | MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO | R$ 11.961.269.355,00 |
13 | MINISTÉRIO DA JUSTIÇA | R$ 11.395.913.832,00 |
14 | MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL | R$ 17.993.536.480,00 |
15 | MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA | R$ 7.948.211.905,00 |
16 | MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO | R$ 5.653.572.928,00 |
17 | MINISTÉRIO DAS COMUNICAÇÕES | R$ 4.429.443.348,00 |
18 | MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO | R$ 3.852.947.505,00 |
19 | MINISTÉRIO DO TURISMO | R$ 3.738.555.347,00 |
20 | MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE | R$ 3.692.926.824,00 |
21 | MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR | R$ 2.627.516.735,00 |
22 | MINISTÉRIO DO ESPORTE | R$ 2.553.944.115,00 |
23 | MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES | R$ 2.213.844.665,00 |
24 | MINISTÉRIO DA CULTURA | R$ 1.878.336.377,00 |
25 | MINISTERIO DA PESCA E AQÜICULTURA | R$ 553.279.826,00 |
Diz-se que o brasileiro é extremamente criativo, consegue fazer malabarismos financeiros que o permitem chegar ao final do mês sem estar mergulhado no mais absoluto desespero. “Se tens um limão, faça uma limonada”. Mas, convenhamos, há um limite. Reitero minha posição sobre a necessidade de otimizar os recursos públicos destinados ao desenvolvimento cultural do país, de abandonarmos os discursos políticos que reduzem tudo a percentuais e milhões. Sem dúvida, de nada adianta ter recurso se não há planejamento, pesquisa, diagnósticos precisos da realidade sobre a qual se quer atuar. Por outro lado, fazer limonada com um mísero limão é exigir criatividade demais da recém-criada Secretaria de Economia Criativa…
[1] Para minha surpresa, estas informações me foram passadas, atenciosamente, por Ricardo Medeiros Coelho de Souza, do Setor de Cultura da Representação da UNESCO no Brasil, a quem agradeço.
Comentários