Tenho um filho de dois anos e sete meses. Nesta
idade, por mais que incentivemos as mais diversas brincadeiras, quebra-cabeças,
contação de estórias, corrida de carrinhos, instrumentos musicais os mais
diversos (praticamente uma banda: violão, pandeiro, flauta, gaita, tambor, teclado,
pianinho etc.), chega um momento em que o audiovisual ganha a batalha. O que
nos traz, sem qualquer sentimento de culpa, certo alívio depois da volta do
trabalho, do cansaço do dia-a-dia, da vontade de sentar e não ter que fazer
nada. Claro, filhos em primeiro lugar. Então, brincamos, damos toda a atenção
que merecem e, depois, um pouco de desenhos animados ou filmes não faz mal
algum. Acho, inclusive, que diversificar as fontes de onde ele bebe cultura é
muito saudável.
O que Miguel gosta de assistir? Bom, é fã
incondicional das aventuras protagonizadas pelos brinquedos falantes de Toy
Story, especialmente o cowboy chamado Woody e o astronauta Buzz Lightyear, cujo
bordão “ao infinito e além” rivaliza com o “para o alto e avante” do Super-Homem.
Dorme com o pijama do Buzz, e acha que voa com a capa vermelha do Super-Homem. Sem
a capa, nada feito: certo dia, na pracinha, sugerimos, eu e a mãe, que voasse
por aí. Mas como, se a capa havia ficado em casa? Também é chegado nos desenhos
da Disney, adora o Hércules, gosta do Piu-Piu e do seu algoz, o Frajola, do
Pica-Pau, de vez em quando ainda pede para ver Baby Einstein na hora de dormir.
Não desgosta do mexicano Chaves. Apresentado pela mãe, é fascinado pelo Harry
Potter, tem até a varinha mágica e os óculos do pequeno bruxo. Sinceramente, este
tipo de filme não faz o meu gênero, mas tudo bem, louvemos a diversidade
cultural…
Não vou cair no discurso chato da dominação
cultural anglo-saxônica, da globalização, da homogeneização cultural, da
passividade latino-americana, do “nós” versus “eles” porque, apesar do poder
das multinacionais do entretenimento, não somos obrigados a consumir o que nos
oferecem. Engolimos o que queremos. A questão, portanto, é a ampliação da
oferta de produtos e serviços culturais, nacionais ou estrangeiros, e não a
demonização daquilo que existe nas prateleiras dos “supermercados culturais”
porque, convenhamos, discursos ufanistas e/ou nacionalistas não são antídoto
para o veneno.
É por isso que fiquei muito feliz quando
soube da existência de um DVD de músicas populares brasileiras, cantadas por
crianças e protagonizadas por uma galinha azul, a Galinha Pintadinha. Algumas
das músicas, em formato de desenho animado, são transmitidas de geração em
geração, como aquela que diz que “o sapo não lava o pé, não lava porque não
quer” e “atirei o pau no gato”, que ganhou uma versão politicamente correta que
ensina “não atire o pau no gato, porque isso não se faz/ o gatinho é nosso
amigo/ não devemos maltratar os animais, jamais)”. Pessoalmente, prefiro a
versão original. Nada contra os gatos, tenho duas. Miguel adora a galinha
pintadinha, tem os dois DVDs já lançados. Eu e a mãe ficamos empolgados quando
soubemos que, em janeiro de 2012, estrearia a peça da Galinha Pintadinha, e já
fazíamos planos para levar o pequeno.
Antes de descrever a nossa frustração, apresento
algumas informações interessantes sobre o fenômeno infantil (colhidos de
reportagem do jornal O Globo, do dia 18 de dezembro de 2011): foram vendidos
mais de 500 mil DVDs, ganharam dois discos de platina tripla, computam quase 300
milhões de visualizações no YouTube, também cantam em espanhol e, recentemente,
tiraram Xuxa Meneghel do topo da lista dos discos infantis mais vendidos. Neste
ano de 2012, seus criadores pretendem licenciar mais de cem produtos, dentre
escovas de dente, mochilas, sapatos, pelúcias, canecas, squeezes, piscininhas
além do lançamento da série de livros da Galinha pela editora Melhoramentos. Finalmente,
o terceiro volume do DVD deve sair em meados do ano.
O lançamento do primeiro DVD da Galinha
Pintadinha foi possível graças a recursos disponibilizados pelo Fundo de
Investimentos Culturais de Campinas. Acredito que nem mesmo seus criadores
poderiam imaginar o sucesso que estava por vir, não poderiam adivinhar que sua
galinha era, na realidade, a galinha dos ovos de ouro. O segundo volume já
contou com o patrocínio através da lei de incentivo fiscal à cultura do governo
federal, a Lei Rouanet. O terceiro volume a ser lançado deve ter o mesmo tipo
de subsídio.
Obviamente que a Lei Rouanet, em sua
essência, é extremamente benéfica ao desenvolvimento cultural brasileiro. Expus
os pontos positivos e negativos num texto intitulado “Nem tanto ao céu, nem
tanto à terra: limites e possibilidades da lei de incentivo à cultura”, publicado
inclusive no site do Ministério da Cultura (http://www.cultura.gov.br/site/2010/02/22/artigo-de-marcelo-gruman/).
Dentre suas possibilidades está a oportunidade de produtores culturais
divulgarem sua obra, o que me parece ser o caso da Galinha Pintadinha. Afinal, convencer
os departamentos de marketing de empresas privadas a financiar uma animação com
parte do cancioneiro popular brasileiro talvez não seja tarefa das mais fáceis.
O sucesso do primeiro volume, conforme dito acima, abriu as portas destas
mesmas empresas. Sem critérios objetivos que orientem a aplicação da verba
oriunda da renúncia fiscal não é possível implantar a democratização do acesso
à cultura, a formação de público, o acesso aos meios de financiamento. Concentração
de recursos nas mãos de poucos produtores, em poucas cidades, em poucas
linguagens artísticas, este parece ser o diagnóstico da Lei Rouanet até o
momento.
Mas onde entra nossa frustração com a
Galinha Pintadinha? Exatamente por descobrirmos que o espetáculo teatral custa
R$ 70,00 (R$ 35,00 para as crianças a partir de 2 anos, desde que sentadas no
colo do responsável), apesar de financiado por recursos oriundos da lei de
incentivo fiscal à cultura, através da multinacional Procter & Gamble. Uma
das premissas do incentivo é a diminuição do valor do ingresso, visto que o
patrocinador está deixando de recolher uma determinada quantia à União, além da
questão da responsabilidade social, tão em voga nos discursos empresariais. Ou
seja, se quisermos levar Miguel, desembolsaremos quase R$ 200,00, ou cerca de
um terço de um salário mínimo, sem contarmos os gastos extras que acompanham um
programa desse tipo: a pipoca, o suco/refrigerante, o táxi/ônibus (não temos
carro) etc. Somos todos a favor da economia da cultura…
Talvez não seja coincidência o fato da peça
estar em cartaz em um teatro localizado no bairro do Leblon, popularizado nas
novelas da Rede Globo, bairro de chiques e famosos, uma espécie de Upper West
Side carioca. Os indícios de elitização no consumo deste tipo de produto
cultural são mais do que fortes. Pergunto por que não ocupar teatros
localizados no centro da cidade, com acesso facilitado a pais e filhos que vêm
dos subúrbios. Ou por que não cobrar valores menos extorsivos, valores estes
mais altos do que muitas peças voltadas para o público adulto. Não acredito que
a elitização seja o propósito dos produtores do espetáculo, apenas o lucro
rápido, o que compreendo. E isto eles estão conseguindo porque, extorsivos ou
não, os ingressos vem se esgotando rapidamente.
Aparentemente, qualquer esforço é válido
para satisfazer os pimpolhos. Uns, por não refletirem sobre os abusos de quem
quer lucrar com o mundo de fantasias das crianças, outros por desconhecerem os
mecanismos de isenção fiscal à cultura, além, é claro, dos que não vêem
impedimento moral para gastar o que for preciso para fazer os filhos felizes. Digamos
que, neste caso, regras e limites ficam para depois. Os mal-humorados dirão
“faço com o meu dinheiro o que bem entender”. Correto. Mas, com o dinheiro
público, não.
Eu prefiro ensinar ao Miguel o valor do
dinheiro. Infelizmente, ele vai continuar assistindo a Galinha Pintadinha na
tela da televisão.
Também disponível em: http://www.culturaemercado.com.br/
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