Cultura invisível

Depois de pular o Carnaval como bom carioca, cantando “alalaô” nos blocos de rua, fugindo dos trios elétricos em que se transformaram os tradicionalíssimos Cordão do Boitatá e o não menos popular Simpatia é Quase Amor, e curtindo os bloquinhos dedicados aos pequenos foliões (a imaginação do carioca não tem limites: o “filhote” do “Que Merda é Essa” se chama “Que caquinha é Essa”, e desfila pelas ruas do bairro Ipanema) junto com o Miguel e sua mãe, tirei alguns dias de férias pra descansar. Ninguém é de ferro
O que fazer numa cidade como o Rio de Janeiro no início de março, com as temperaturas alcançando facilmente os 40º à sombra, literalmente, céu azul e (algumas) praias próprias para o banho? Tentando encaixar-me no estereótipo físico do carioca moreno de sol, tentando fugir de meus ancestrais poloneses, corri para a Praia Vermelha, na Urca, de frente para o Pão de Açúcar, com sua areia granulada, água gelada e população composta de locais e turistas que aproveitam a proximidade do bondinho para colocar os pés na água. Hábito estranho esse, tirar o tênis e molhar os dedos dos pés, talvez querendo a benção de São Sebastião, porque refrescar não pode ser. Eu sei que este estranhamento não combina com a obrigação de estranhar o familiar e aproximar o “exótico”, mas o ofício de antropólogo às vezes cansa. De todo modo, consegui meu objetivo: esturriquei.

Mas nem só de praia vive o Rio de Janeiro, apesar da propaganda oficial ainda pautar-se pela pobreza de idéias: samba, futebol, belas mulheres, praia. De vez em quando uma exposição interessante surge no caríssimo cenário cultural carioca (filmes e peças de teatro, estes subsidiados com incentivos fiscais, com preços europeus) como é o caso da exposição de pinturas, desenhos e esculturas de Amedeo Modigliani, intitulada Modigliani: imagens de uma vida, em cartaz desde o dia 1º de fevereiro no Museu Nacional de Belas Artes, instituição vinculada ao Instituto Brasileiro de Museus do Ministério da Cultura. A abertura contou com a presença da Ministra da Cultura do Brasil. A mostra traz, pela primeira vez ao Brasil, uma coleção de 12 pinturas e 5 esculturas originais além de desenhos, documentos, fotos e manuscritos de Modigliani, expressivo nome das artes plásticas nas primeiras décadas do século XX. Acredito que, a partir de agora, os amigos leitores compreenderão o porquê do título, já que as divagações sobre as praias do Rio de Janeiro e seu Carnaval parecem meio perdidos, não é?
Quis consumir cultura, ampliar meus horizontes estéticos para além dos livros com reproduções das figuras femininas nuas que Modigliani, com seu traço característico, rabiscava. Rumei para o MNBA junto com meus sogros na infernal tarde do último dia 1º de março. Um enorme banner pendia na entrada do Museu, anunciando a exposição. Então, iniciou-se a decepção. Depois de passar pelo detector de metais, aparentemente desempenhando papel figurativo, pagamos a entrada de R$ 8 e subimos a escada para o segundo andar. Inexplicavelmente, não há qualquer indicação da localização da exposição, não há qualquer informação escrita, desenhada, criptografada, em braile, cantada ou em qualquer outra linguagem simbólica que escolhamos. Senti vergonha, pelos turistas, sobretudo. Será necessário um curso de marketing aos gestores do MNBA ou da exposição? Será que a Ministra da Cultura não observou este detalhe ínfimo, mas fundamental? Passado o oba-oba da inauguração, a realidade machuca e a cultura parece invisível (voilà o título!).
Talvez haja quem pense, lendo estas linhas, que sou um espírito de porco, um ranzinza, alguém de mal com a vida, um reclamão que só vê o lado negativo das coisas, mas não é o caso. Freud dizia que, às vezes, um charuto é, apenas, um charuto. No nosso caso, a falta de informação ao visitante NÃO é apenas um detalhe, uma falha técnica. A ausência de informação aos visitantes quanto ao local da exposição é bastante significativa, representativa do lugar que a cultura, em seu sentido amplo, não restrita à brasileira, ocupa nas políticas de desenvolvimento humano e econômico no Brasil.
Subimos a belíssima escada de mármore até o terceiro andar do prédio, ao que fomos informados pelo segurança que a exposição acontecia no andar de baixo, e nos orientou como chegar.  Acho que preciso de fisioterapia, meus joelhos doíam. Subi e desci dezenas de degraus à toa. Atravessando um corredor no andar correto, passamos por uma mesinha com três livros referentes à exposição, bem como seus preços anotados em pedaços de papel. Percorremos a exposição mais rápido do que gostaríamos, mas não havia muito o que ver. Imagino o trabalho que o MinC teve para trazer a exposição ao Brasil, com a “ajuda” do incentivo fiscal, e louvo de coração a iniciativa, mas a quantidade de obras expostas poderia/deveria ser bem maior, brindando o público com seus magníficos desenhos e pinturas (as esculturas não me impressionaram).
Na saída, minha sogra quis levar uma lembrança, um broche, um marcador de livro, um souvenir, como é praxe em qualquer exposição bem planejada. Procuramos a “lojinha” em vão. Ponderei que isto sim era um detalhe, o apelo comercial, ao que minha sogra, muito corretamente, lembrou que a venda de souvenirs movimenta a economia, a tão propalada economia da cultura. Acho que vou indicá-la ao MinC como consultora de marketing, quem sabe um cargo na Secretaria de Economia Criativa.
A invisibilidade da cultura, ela está lá e ninguém vê. Há algum tempo, publiquei aqui um texto intitulado “A cultura como não-problema”, onde argumentava que o minguado orçamento do Ministério da Cultura refletia a importância que o Estado brasileiro vem lhe dando no atual governo. Já são dois cortes sucessivos, nos orçamentos de 2011 e 2012, fato cuja retórica característica dos políticos tenta minimizar, lembrando do socorro prestado pelas emendas de parlamentares simpáticos à causa. A cultura retornou ao seu status pré-2003, de não-problema, porque ausente da agenda política do governo. Quem liga para ela? É a cereja do bolo, infelizmente. Primeiro o pão, depois o circo…
Voltando da exposição, fiz um exercício de memória e consegui juntar alguns fatos relevantes envolvendo órgãos do Ministério da Cultura que corroboram minha tese da invisibilidade:
Fato 1: o caso dos elevadores do Palácio Gustavo Capanema. Divulgado em programas de rádio e em colunas de jornais, o estado deplorável dos elevadores sociais do Palácio Gustavo Capanema teve um desfecho quase trágico. Um deles despencou de um certo andar, com a ascensorista e alguns funcionários/visitantes, mas, por sorte, foi travado por algum dispositivo de segurança. A situação vem se arrastando há anos, mas ninguém parece ver.
Fato 2: as condições de trabalho insalúbres do Palácio Gustavo Capanema, sede da Funarte, da representação regional do MinC, de setores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN e da Biblioteca Nacional. Sua beleza estética é incotestável, símbolo maior da arquitetura modernista brasileira, visitado por estudantes de todo o país e do mundo, por turistas de todos os cantos, seus brise-soleil e uma preocupação ecológica (inconsciente?) com o máximo aproveitamento da luz solar através do paredão envidraçado de uma de suas faces. Talvez os verões dos anos 1940 não fossem tão infernais, ou talvez fossem e a preocupação estética tenha prevalecido sobre a funcionalidade. Fato é que trabalhar no Capanema entre dezembro e março é desumano, tamanho o calor nas salas. Ar-condicionado é privilégio do gabinete da presidência e de alguns diretores. Os demais servidores fazem uso de ventiladores que circulam ar quente. Algumas salas estão infestadas de baratas. Estaríamos diante de uma versão pós-moderna de Casa Grande e Senzala?
Fato 3: O Ministério da Cultura realizou, em 2006, seu primeiro concurso público. Um número significativo de concursados já pediu exoneração. As principais justificativas: salário defasado, falta de estímulo das instituições no que se refere à permanente capacitação profissional; ausência de um plano de cargos e salários.
Com relação ao Palácio Gustavo Capanema, está prevista uma reforma geral do edifício a partir de outubro deste ano, conforme matéria publicada no dia 20 de fevereiro no jornal O Globo, e parcialmente reproduzida abaixo:
Marco da arquitetura moderna brasileira, o Palácio Gustavo Capanema, sede do Ministério da Cultura (MinC) no Rio, vai entrar em obras em outubro. Será a primeira grande reforma no prédio, na Rua da Imprensa 16, no Centro, receberá desde a sua inauguração, nos anos 40. Segundo a superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a arquiteta Cristina Lodi, a restauração deverá ser iniciada pela fachada e pela cobertura do edifício, que foram esquadrinhadas num trabalho de vistoria nos últimos quatro  meses.
(…)
Estão sendo vistoriados os revestimentos; as redes elétrica, hidráulica e de  esgotamento sanitário; e os conjuntos de elevadores. Segundo o Iphan, a última reforma feita no edifício aconteceu há dez anos, quando os banheiros e a parte de iluminação passaram por obras.
(…)
Qualquer mudança, contudo, terá que ser submetida ao conselho consultivo do Iphan, uma vez que o prédio foi tombado em 1948, por sua importância artística. — A instalação de ar  condicionado central está em debate, porque uma das características do edifício é ter andares livres de paredes. Não queremos interferir nessas características originais. Nos anos 40, quando o prédio foi feito, imaginou- se que a ventilação natural era suficiente. Mas o clima tem ficado cada vez mais quente e, no verão, tem sido difícil trabalhar apenas com a  ventilação natural — diz Cristina Lodi. (grifo meu)
Faço votos que a reforma realmente saia do papel e, se sair, só terei motivos para aplaudir, nada mais. Afinal, é obrigação do poder público zelar pelo seu patrimônio e pelos gestores que mantêm a máquina funcionando. Mas a questão não se resume ao Palácio Gustavo Capanema. Os exemplos relatados aqui não têm caráter denuncista, mas de alerta para a necessidade de manutenção de padrões mínimos de infra-estrutura, que garantam segurança e, porque não, conforto e dignidade dàqueles responsáveis pelo planejamento, execução e avaliação das políticas públicas voltadas aos trabalhadores da cultura e seus consumidores. É pedir muito?

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