Tentativas de racialização das políticas culturais

A Fundação Nacional de Artes (Funarte), autarquia vinculada ao Ministério da Cultura responsável pelo fomento e incentivo às atividades nas artes cênicas, artes visuais e música, lançou, em 2012, o Edital de Ocupação do Teatro Glauce Rocha. Seu objetivo foi selecionar projeto que promovesse espetáculos de teatro adulto e teatro para a infância e a juventude dentre outras atividades relacionadas ao teatro, como seminários, palestras, debates, cursos e oficinas no período de abril a julho de 2012. Foi destinado ao projeto selecionado o valor bruto de R$ 500 mil.
A avaliação dos projetos inscritos foi realizada por Comissão de Seleção nomeada por Portaria do Presidente da Funarte. Em nota técnica divulgada no site da autarquia, concomitante à divulgação do resultado, a Comissão de Seleção informou os critérios utilizados na avaliação: relevância do projeto artístico, oferta de atividades de formação, contrapartidas para a comunidade e representatividade da produção artística nacional. À luz desses critérios, foi selecionado o projeto intitulado “Linguagens Brasileiras – Cultura Negra em Cena”.

Inconformado com o resultado do Edital, o representante de um dos muitos grupos preteridos (doravante identificado por X) leu um manifesto durante reunião de diretores da Funarte, com a presença do atual presidente da autarquia, o ator Antonio Grassi. No manifesto, questiona-se a demora na divulgação da programação do grupo vencedor e a falta de resposta ao recurso interposto junto à Coordenação de Teatro, responsável pela gestão do Edital, concluindo-se daí uma “má-fé” dos julgadores e da própria instituição, que “não os querem”. A argumentação do representante ao longo da leitura do manifesto indica, entretanto, possíveis motivos para a suposta “má-fé”.
Em primeiro lugar, uma preferência por proponentes “brancos”, em detrimentos de “negros”. A premiação do projeto “Linguagens Brasileiras – Cultura Negra em Cena” confirmaria que “o dinheiro continua na mão de produtores brancos (…) porque as duas donas da (produtora) são brancas e descobriram como ganhar dinheiro com projetos de negão” (sic).
Em segundo lugar, e intimamente relacionada ao primeiro argumento, está a ausência de profissionais negros nas comissões de seleção, contrariando sugestão da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, da Presidência da República. A diversificação (racial) das comissões seria um caminho natural, dado que a cultura brasileira é, também, diversa. Se houvessem profissionais negros nas comissões, argumenta-se, injustiças como as cometidas pela Comissão de Seleção do Edital de Ocupação do Teatro Glauce Rocha não aconteceriam ou, se acontecessem, seriam denunciadas. Nas palavras do proponente:
“Ano passado nós perdemos esse edital, eu acho que, por conta de fazermos projetos bonitinhos, cheios de fotografias, alguém olhou e disse assim: ‘ah, não, mas aqui tem muita dança e o teatro Glauce rocha é um teatro voltado para o teatro (…)’. Se tivéssemos alguém negro no ano passado, diria ‘não, negros fazem teatro com o corpo todo’. Se tivéssemos negros nessa comissão (2012), diria ‘não, essas meninas tem seis anos, essa companhia, com esse diretor, tem vinte e três’. Sabe o que diria? ‘X., você ganhou mas não levou. Você não batalha pela cultura negra nos espaços? Taí, ganhou mas não levou. Tem cultura negra, não reclame’”.
O terceiro argumento identificado no discurso de X., finalmente, é o da vasta experiência do proponente preterido na promoção das “artes negras”, há mais de duas décadas “na luta por valorização das artes negras e por inclusão dos artistas e técnicos negros no mercado de trabalho”, em contraposição às produtoras brancas que “descobriram que o negro dá dinheiro ontem, cinco, seis anos atrás”.
Os três argumentos expostos acima permitem-nos imaginar que está em jogo a luta pela implantação de uma “política de reparação”, onde “brancos” tem de reparar injustiças contra “negros”. Essa lógica está presente no raciocínio segundo o qual o dinheiro “continua na mão de produtores brancos” que descobriram como ter lucro com “projetos de negão” (sic). A figura do “branco” é, inexoravelmente, maquiavélica. Será razoável, entretanto, imaginarmos que produtores de pele escura estariam, também, atrás de lucro? Produtores de pele escura podem explorar atores de pele branca? E de pele escura? Isto seria reparação? A comissão de seleção e as produtoras são cúmplices, racialmente solidárias?
No que toca especificamente ao Edital de Ocupação do Teatro Glauce Rocha, é preocupante que à grave acusação de “má-fé” não tenha correspondido uma resposta incisiva da Funarte por meio de seu presidente no mesmo evento, refutando-a, ou por meio de posterior nota oficial que não se limitasse a informar que a Comissão de Seleção é soberana e que a autarquia não interfere no processo de seleção. Isso porque a acusação vai além de uma eventual falha/incompetência administrativa na publicação da programação do grupo vencedor ou na demora em responder ao recurso interposto, uma vez que ambas seriam fruto de algo mais profundo. Toda a argumentação do discurso de X. (negros versus brancos, exploração de brancos contra negros) permite-nos aventar a presença o racismo, eufemisticamente transformado em “má-fé”.
Nenhum proponente – seja ele branco, negro, amarelo, azul ou vermelho – entra num certame se não acredita que suas ideias têm valor e que merecem reconhecimento, e acreditar que um determinado traço físico é o responsável pela não-escolha impede a auto-crítica. Racializar a discussão a respeito da avaliação de projetos é diminuir a capacidade intelectual e profissional dos membros da comissão de seleção, é adotar uma postura arrogante com relação à qualidade de seu próprio projeto em detrimento dos demais concorrentes.
Vale a reflexão: até que ponto políticas de reparação reparam injustiças passadas? A partir de que ponto políticas de reparação transformam-se em assistencialistas? É possível uma política pública de cultura democrática baseada em critérios anacrônicos? O antigo “oprimido” pode ser o novo “opressor”? A negação do conceito de raça como referencial teórico na elaboração de políticas públicas é sinal de racismo do agente público? Qual o papel da meritocracia na elaboração de políticas públicas de cultura? Por que não estabelecer seriamente o anonimato como diretriz para avaliação dos projetos?
Que há racismo no Brasil é inegável e provar a sua existência, em muitas situações é, se não impossível, improvável. Entretanto, tomar a sua existência como ponto de partida na discussão a respeito da elaboração de políticas públicas de cultura democráticas dificilmente ajudará na consolidação de uma democracia cultural no país. Às vezes, um charuto é apenas um charuto.


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