Em janeiro de
2012, escrevi um texto para o portal Cultura & Mercado em que expunha minha
frustração com os valores cobrados para o espetáculo teatral da Galinha
Pintadinha, uma galinha azul que havia feito sua primeira aparição num DVD com
músicas populares brasileiras cujo sucesso impulsionou-a a outros desafios
artísticos. Fazendo sucesso junto às crianças, dentre elas meu filho de menos
de dois anos, chamou logo a atenção de empresas interessadas em patrocinar a
cultura através da lei de incentivo fiscal, afinal de contas, imagem (da
empresa) é tudo. À época, terminava minha reflexão assim:
Passados um ano
e meio da frustração com o galináceo, quer dizer, com aqueles que o exploravam,
a mãe de um coleguinha de escola do Miguel soube que a dupla Palavra Cantada
iria se apresentar na Fundição Progresso, uma casa de espetáculos localizada no
boêmio bairro carioca da Lapa. Em sua página no Facebook, conhecemos melhor a
dupla:
A Palavra Cantada existe desde 1994, quando os músicos
Sandra Peres e Paulo Tatit propuseram criar novas canções para as crianças
brasileiras. Em todos os trabalhos que realizaram desde então, tornaram-se
linhas marcantes a preocupação com a qualidade das letras, arranjos e gravações
e o respeito à inteligência e à sensibilidade da criança. A Palavra Cantada vem sendo aclamada pelo público e
pela crítica do país
como um trabalho diferenciado dentro da nossa cultura musical. Objeto de
inúmeras matérias elogiosas, o Selo recebeu vários prêmios que incentivaram-no
(sic) a cumprir a difícil missão de unir sucesso com qualidade.
A caminho do meu
trabalho, passei na Fundição Progresso para maiores informações. Estão
disponíveis três valores de ingresso, de acordo com o setor selecionado. A
arquibancada custa R$ 60,00, o setor 1 custa R$ 120,00 e o setor 2, R$ 100,00.
Caso o comprador do ingresso tenha carteira de estudante ou tenha menos de 21
anos, o valor cai à metade. Crianças de até um ano não pagam. Nem eu nem minha
esposa temos carteira de estudante, felizmente esta fase já vai longe, nem nos
dispomos a falsificá-la, acusação rotineira de produtores culturais para justificar
preços extorsivos, punindo a parcela honesta da população que quer apenas se
divertir por uma hora, duas horas numa tarde de sábado. Assim, se não desagregarmos a família
Sant’Anna Gruman, o programa de UM DIA
de UM final de semana do mês custará
a bagatela de R$ 150,00, fora a pipoca, o suco e o ônibus/táxi, chegando perto
daqueles mesmos R$ 200,00 que pagaríamos no espetáculo da Galinha Pintadinha,
cerca de um terço do salário mínimo vigente no Brasil, que é de R$ 678,00.
Aparentemente, o
Palavra Cantada não é realizado com recursos oriundos da Lei Rouanet porque não
há o logotipo do Ministério da Cultura, tampouco o da lei de incentivo
estampados na página do espetáculo, apenas o do patrocinador, a Cerveja
Itaipava, fato curioso se admitirmos que boa parte do público não consumirá
este produto. Talvez por isso mesmo o patrocínio, neste caso, não tenha relação
com a dedução fiscal, a menos que a Cerveja Itaipava esteja interessada em
construir uma boa imagem junto aos pais das crianças e adolescentes, potenciais
bebedores de cerveja. Com ou sem dedução fiscal, a imagem do produto tem de
fazer algum sentido porque patrocinar por benfeitoria é que não, de boas
intenções o inferno está cheio.
De qualquer
forma, qualquer das duas opções, dedução fiscal ou não, nos leva a
questionarmos o modelo de fomento às atividades artísticas e culturais no país,
particularmente àquelas voltadas para o público infanto-juvenil. Se há dedução,
os valores do ingresso são uma afronta ao discurso proposto pelo Ministério da
Cultura, calcado no surrados e maltratados conceitos de “cidadania cultural”,
“diversidade cultural” e “fomento”, sobretudo porque a contrapartida da dedução
fiscal é (ou melhor, deveria ser) a diminuição do valor cobrado pelo ingresso; se
não há dedução, a sociedade civil se vê obrigada a fazer lobby junto às
empresas privadas para que invistam em cultura porque, a depender da boa
vontade dos donos das casas de espetáculos e demais intermediários da cadeia
produtiva da economia da cultura, e aparentemente da própria Secretaria de
Fomento e Incentivo à Cultura do MinC, a tal da “democratização do acesso” é
apenas conversar pra boi dormir, pra inglês ver (se tiver dinheiro. Mas deve
ter, porque a libra esterlina é forte, e o real está em queda vertiginosa). O
que, aliás, é mais do que compreensível, visto que o objetivo de um
empreendimento privado é ter lucro, nada contra.
Desejo todo o
sucesso e felicidade à dupla Palavra Cantada, reitero que os músicos nada tem a
ver diretamente com a elitização da produção cultural brasileira, mas não posso
deixar de olhar com olhos do “respeitável público”, o elo mais fraco da tal
cadeia da economia da cultura. Todos devem lucrar com a cultura, uns
financeiramente, outros simbolicamente. Eu quero que meu filho tenha acesso a
uma gama cada vez maior de produtos e serviços culturais, literatura, música,
teatro, exposições, circo, cinema, DVD, e o Estado brasileiro não pode se
omitir, ele deve fazer cumprir o que está escrito na Constituição Federal de 1988,
que garante o direito ao acesso à cultura. O Estado brasileiro não pode deixar
a esta entidade abstrata chamada “mercado” a decisão de financiar ou não um
determinado espetáculo, porque o interesse empresarial, do seu departamento de
marketing, utilizando-se ou não de mecanismos legais como o são as leis de
incentivo fiscal, dificilmente irá ao encontro das políticas públicas voltadas
para a cidadania cultural.
Devemos louvar iniciativas que pregam o respeito à
inteligência e à sensibilidade da criança, como é o caso da dupla Palavra
Cantada, segundo suas próprias palavras. Mas também é importante haver respeito
à inteligência e à sensibilidade dos adultos, especialmente a sensibilidade
financeira.
Também disponível em:http://www.culturaemercado.com.br/
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