Quando meu avô materno morreu, em 2000, eu, sentado
no sofá de sua casa, tentando assimilar a perda de alguém que eu admirava
muitíssimo e que deixava um vazio na minha vida, ouvi de uma vizinha, cuja
intenção era consolar-me, uma frase curta do tipo “Deus quis assim” ou “ele foi
pra um lugar melhor”. Tempos depois, conversando com um rabino ortodoxo na
época em que realizava trabalho de campo para minha dissertação de mestrado, quase
fui fazer companhia a meu avô, naquele “lugar melhor”, ao ouvir que o assassinato
dos judeus pelos nazistas, incluindo bebês recém-nascidos, era fruto de pecados
neste ou noutro mundo. E Deus puniu a todos, perdoar pra quê, escreveu não leu,
o pau comeu. Em ambos os casos, por culpa da educação recebida em casa, não
respondi à altura os insultos.
Num pequeno texto, intitulado Abraão e
Isaque, Luis Fernando Veríssimo imagina um diálogo entre pai e filho, em que o
filho, magoado, questiona a submissão do pai e sua disposição de imolá-lo
porque alguém ou algo mandou que assim procedesse. Um trecho do diálogo segue
assim:
–
O fio do cutelo encostou na minha garganta.
–
Mas eu não o matei!
–
Porque Deus não deixou. Porque Deus mudou de ideia.
–
Meu filho…
–
Eu sei. Faz muito tempo. É melhor esquecer. Vou conseguir sobreviver às minhas
memórias e aos meus pesadelos. Como você sobreviveu ao que sabe.
–
O que eu sei?
–
Que deve tudo que tem, seu poder e sua glória, a um Deus volúvel. A um Deus incerto
do que faz. A um Deus que volta atrás. A um Deus inconfiável.
–
Ele estava me testando.
–
Então é pior. Um Deus frívolo e cruel.
Frívolo, cruel e, acrescento eu, sádico. Por
outro lado, a atitude do pai desnaturado é perfeitamente aceitável se
admitirmos que o outro lado da moeda seja a proteção contra o Mal, o conforto
de saber que o destino já está traçado, que não se tem responsabilidade sobre
ele por mais que o discurso religioso confira ao livre arbítrio um status
positivo. A onisciência e a onipotência divina, se correr o bicho pega, se
ficar o bicho come, foi magistralmente transposta para o plano humano por Woody
Allen, naquela cena antológica em que a mãe judia (quem mais?) aparece como um
fantasma sobrevoando a cidade de Nova Iorque. Quem não se lembra do susto, medo,
alegria e alívio do personagem que vê sua mãe desaparecer no meio de um show de
mágica?
A alternativa ao outro mundo é dolorosa. Romeu
e Julieta representam bem a transformação de uma sociedade até então construída
única e exclusivamente sobre a Tradição, sobre a reprodução de papéis sociais, onde
o presente reproduz o passado e antecipa o futuro. A Tradição significa, tomando
emprestado de Sartre uma expressão usada para caracterizar o pensamento racista,
“a constância da pedra”, é a imutabilidade, é a chatice em estado puro porque
não abre espaço para o livre pensar, para o questionamento.
A tragédia dos Montecchio e Capuleto fala de
um momento em que o indivíduo enquanto valor, não apenas corpo com fronteiras
físicas bem definidas, passa a dar as cartas, a construir sua história, é
quando podemos começar a falar de projeto de vida, de biografia, de construção
de identidades. Na realidade, a própria noção de identidade só faz sentido na
Modernidade, porque diz respeito à forma como nos vemos e queremos ser vistos
pelos outros, e esta definição acontece no processo de interação, não é dada a
priori. Aqui, sim, podemos falar de livre arbítrio e das consequências de
nossos atos, boas ou más, cuja punição acontece de forma mais pungente na nossa
cabeça (tirando, claro, crimes passíveis de punição pelo sistema judiciário).
A Modernidade significa a “psicologização”
da vida, a crescente angústia pela indeterminação do dia de amanhã, desde
questões triviais como a necessidade de escolhermos o que comer no café da
manhã e que roupa vestir para ir ao trabalho até decisões um pouco mais
importantes, como a escolha da pessoa com quem se quer dividir o mesmo teto, decisão
angustiante ainda que a escolha, condizente com os tempos modernos, não seja
inevitavelmente definitiva apesar dos votos recitados ad nauseam na troca das
alianças. A escolha do parceiro também é diária, e a eventual separação não é
isenta de sofrimento.
A Modernidade abriu espaço e legitimou a
existência daqueles que não acreditam na existência de um ser, entidade ou
força superior independente de nossa vontade. Ela permitiu que Nietzsche, apesar
de não fazer a apologia do ateísmo, chegasse à conclusão de que “Deus está
morto”, como observamos nesta passagem de A Gaia Ciência:
Deus está morto! Deus permanece morto! E
quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos
algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso
sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual
a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados
haveremos de inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não
teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca
existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a
fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até
hoje!
Abriu espaço aos ateus. Ser ateu no Brasil
não é fácil, a declaração provoca reações que vão do espanto ao medo, passando
pela incredulidade (crentes incrédulos?) como se o interlocutor fosse dotado de
rabo e chifres (talvez seja…), um fruto exótico ou podre, uma anormalidade
pensante. Ser ateu no Brasil significa ser parte de 0,4% da população, segundo
os últimos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Talvez
seja possível reivindicar cotas, sob o manto da intolerância, da perseguição, do
bullying.
Os ateus sofrem bullying cotidianamente ao
ligarem a TV aberta, concessão estatal, e se depararem, dependendo da hora do
dia, com pregações religiosas em metade dos canais disponíveis; quando, num
final de domingo melancólico, são obrigados a ouvir, de dentro de suas casas, os
cantos e orações da igreja que fica bem longe, mas dotada de potentes alto-falantes;
quando são obrigados a ouvir de um interlocutor que o parceiro teve de acabar
com o relacionamento porque, sendo o interlocutor de outra religião, estaria
fadado a viver em companhia do Coisa Ruim; quando veem grupos obscurantistas e
intolerantes tomando de assalto o Congresso Nacional; quando tem cerceado seu
direito constitucional de ir e vir, por conta de eventos religiosos propositadamente
mal planejados com o intuito de “dar mídia”.
Devo confessar que invejo aqueles que creem,
que tem em quê se apegar nos momentos difíceis, nunca estão sós. Quero ter fé, mas
não consigo. Serei um caso perdido? Talvez parte da humanidade tenha substituído
Deus pelos psicanalistas, talvez os psicanalistas sejam os deuses modernos, trocaríamos
seis por meia dúzia e não aliviaríamos nossas angústias, nosso mal-estar.
Pensando bem, é preferível uma relação em
que uma das partes possa ser demitida, com a qual temos uma relação afetiva, sim,
mas, principalmente, pecuniária, do que uma relação em que uma das partes tem o
direito de vida e morte sobre a outra. O difícil vai ser explicar pro meu filho
que, depois daqui, voltamos ao pó.
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