Dia
desses, meu filho de quatro anos estava sendo enxugado pela mãe após um banho
refrescante pós-escola. Como, naquele dia em particular, o calor não dava
trégua mesmo após o pôr do sol, Miguel questionou o fato de ter de colocar a
blusa do pijama e não poder ficar mais à vontade, apenas de cueca. Para
reforçar seu argumento, lembrou que o pai, já de banho tomado, andava pela casa
apenas com a parte de baixo do pijama. A linha de raciocínio era clara: por que
devo me submeter à “lei do pijama” se a fonte de autoridade, aquela que
instituiu a obrigação de andar pela casa vestido “adequadamente”, sequer a
cumpre? Afinal de contas, o exemplo deve vir de cima, a lei deve servir para
todos.
Podemos
extrapolar esta pequena cena cotidiana de uma família carioca, deste
microcosmo, para a realidade da sociedade brasileira, sobretudo a partir do que
preconiza a Constituição Federal de 1988, que afirma claramente, num de seus
primeiros artigos, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza. Para isso, tomo como fonte de comparação o recente episódio
da condenação e prisão de políticos envolvidos no chamado “mensalão”.
Três
destes políticos cumprem pena no Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito
Federal, e, de acordo com as normas internas da instituição, visitas de
familiares só podem ocorrer às quartas-feiras e quintas-feiras. Subvertendo
esta regra, os políticos condenados receberam parentes e amigos (especialmente
deputados federais) numa terça-feira, contrariando mulheres de presos que
acampavam em frente à penitenciária. E por que as mulheres de presos acampavam?
Porque para visitar seus maridos é preciso uma senha, e as senhas, cujo
contingente diário é limitado, são distribuídas a partir de 9h de quarta-feira.
Resultado: quem chega cedo, consegue a visita para a própria quarta-feira; as
“atrasadas”, somente para o dia seguinte.
A
diferença de tratamento dispensado às mulheres e parentes de presos “comuns” e
aos familiares dos políticos presos (atenção, não confundir com presos políticos)
revoltou, de acordo com matéria do jornal O Globo do dia 19 de novembro, algumas
das acampadas. Cito-as:
Errado
isso. Ela (mulher de um dos políticos presos) tem que pegar fila como todos
pegamos. Tem que passar pelas mesmas coisas que a gente passa. Pode ser até
mulher de presidente, mas tem que passar pelo que a gente passa.
Tem que
ter condições iguais, a gente enfrenta sol e chuva. Eles chegaram e já podem
visitar, deveriam entrar na fila e pegar senha.
A gente se
sente injustiçado, revoltado. A moça vem, visita o marido dela dois dias
seguidos, enquanto a gente tem que estar aqui várias horas antes para conseguir
entrar cedo e visitar nossos maridos. Elas não são melhores do que a gente por
ter poder aquisitivo maior.
Quando
a entrevistada diz que “até mulher de presidente” tem que entrar na fila ela
quer achatar uma hierarquia social que persiste no Brasil, o famoso “você sabe
com quem está falando”, o jeitinho, a malandragem, a esperteza, a sociedade
relacional em que o conceito de cidadania não passa de uma utopia. Ela nada
mais faz do que lembrar aquilo que consta da Carta Magna, que todos são iguais
perante a lei, e que esta igualdade representa a ruptura com uma sociedade
patrimonialista, com a frase atribuída a Luis XIV que diz que “O Estado sou
eu”, com a máxima “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”, em que interesses
públicos e privados se confundem em benefício, claro, destes últimos.
Aliás,
além da mulher do presidente, o presidente e demais autoridades da
administração pública deveriam ser os primeiros a cumprir a lei porque, como
servidores públicos e representantes do povo, têm a obrigação de zelar pelo
princípio constitucional da impessoalidade. Entrar na fila é estar em igualdade
de condições, pegar uma senha significa despersonalizar a demanda por um lado e
estabelecer uma identidade em comum entre os demandantes: “mulheres de presos”,
ricos ou pobres.
Estamos
falando aqui de valores, de ética, de regras que pautam nossa conduta diária.
Que mensagem o “episódio da Papuda” está sendo transmitida aos simples mortais?
Que o crime compensa? Que manda quem pode e obedece quem tem juízo? Que
“farinha pouca, meu pirão primeiro”? Que exceções à regra é a regra? Que o
dinheiro compra tudo?
Sejamos
claros: a natureza da transgressão moral de quem fura a fila na visita a
parentes encarcerados, quem fura a fila do cinema, quem dá “carteirada” ao
guarda de trânsito para não ser multado, quem cospe na calçada, quem joga lixo
em qualquer canto, é absolutamente a mesma. Trata-se do desrespeito às regras
básicas de convivência numa sociedade democrática, em que se respeita o espaço
público e onde o conceito de cidadania é praticamente exercido, exigindo
direitos e cobrando deveres.
Outro dia,
o ex-presidente Lula reclamou que a lei só estava sendo aplicada aos crimes
cometidos por políticos do Partido dos Trabalhadores, ou melhor, por ações que
o Supremo Tribunal Federal considerou criminosas, uma vez que os dirigentes do
PT não concordam com este julgamento. Cobrava o mesmo tratamento rigoroso aos
desafetos do PSDB, envolvidos num nebuloso caso de corrupção em São Paulo.
Concordo plenamente com o ex-presidente, mas dou-me o luxo de perguntar se, na
verdade, a contrariedade dele se deva pelo fato de a lei estar sendo cumprida
pura e simplesmente, doa a quem doer. Afinal, a lei, no Brasil, como é possível
verificar na composição da população carcerária, só serviu, até a prisão de
“mensaleiros”, ao trio PPP (preto, pobre e puta).
A
sociedade brasileira está moralmente doente, e os exemplos, como vimos, vêm de
todos os lados, da esquerda e da direita, de cima e de baixo.
A
propósito: coloquei a camisa do pijama.
Também disponível em:https://espacoacademico.wordpress.com
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