Uma das justificativas preferidas dos apologistas da
existência do Estado de Israel como Estado judeu, ou seja, não laico, remonta,
obviamente, à hecatombe que varreu do mapa europeu milhões de judeus. A morte
de seis milhões seria a prova de que a integração dos judeus às sociedades
europeias que lhes haviam aberto as portas era, nada mais, do que ilusão, uma
miragem num deserto antissemita. Um dos exemplos dados que comprovam a teoria é
daquele judeu alemão honrado com a Cruz de Ferro, orgulhoso de seu
pertencimento à nação alemã, combatente da Primeira Guerra Mundial que, de uma
hora para outra, teve revogada sua cidadania, seus direitos políticos, seu
direito de existir não só como alemão, mas como ser humano.
A secularização vivida pela Europa teria sido um engodo, e a
sobrevivência judaica, ironia das ironias, possível somente por meio de
processo de guetificação voluntária em substituição à guetificação forçada
vivida ao longo processo de destruição dos judeus europeus, cujo maior símbolo
é o Gueto de Varsóvia. O voluntarismo para o fechamento das fronteiras físicas
e simbólicas poderia ganhar corpo em Uganda ou na Palestina; o importante era
assegurar, de uma vez por todas, a perpetuação dos judeus diante de um mundo
inerentemente hostil.
Hoje, passadas mais de seis décadas desde o nascimento do
Estado de Israel, o discurso dos que o defendem como a única forma de autopreservação
incorpora a possibilidade de acolhimento de não judeus à cidadania israelense,
contanto que aceitem sua natureza étnico-religiosa. “Um Estado judeu, mas não
só para judeus”. A pergunta que fica no ar é a seguinte: é possível uma
sociedade ser plenamente democrática, seu sistema judiciário equânime a quem
quer que dele necessite, se na natureza mesma da construção do Estado nacional
a noção de cidadania é definida a partir de critérios exclusivistas?
A incorporação de imigrantes passa a ser um favor,
permanecendo a distinção entre “mais” e “menos” dignos da justiça dos homens.
Quando a Justiça não condena o bombardeio da casa da família de um palestino acusado de matar jovens israelenses e nada
faz para punir os israelenses que assassinaram um jovem palestino, queimando-o
vivo, é um sinal de que algo não vai bem.
No Brasil, Estado e religião estão separados oficialmente
desde a Constituição Federal promulgada em 1891. A relação entre os dois é
difícil e, hoje, testemunhamos a tentativa de privatização do espaço público
por denominações religiosas as mais diversas, cujo lobby é tão forte que leva
candidatos à presidência da república a afirmar, constrangedoramente (espero
eu) que “feliz é a nação cujo deus é o senhor”. O debate envolvendo temas caros
à cidadania universal, como a prática do aborto e a união homossexual, é
contaminado pelo discurso obscurantista religioso.
Quando religião e política se misturam, o resultado é desastroso,
seja onde for: no Brasil, na Arábia Saudita ou em Israel. Ademais, no caso de
Israel, há uma profunda idealização, por parte dos judeus da chamada diáspora,
do que é a sociedade israelense contemporânea, cingida entre jovens desiludidos
com o avanço do fundamentalismo religioso na esfera da política e das relações
cotidianas, e estes mesmos fundamentalistas religiosos que sonham em
estabelecer a Israel bíblica. Conforme depoimento da respeitada jornalista
brasileira Guila Flint, correspondente há vinte anos no Oriente Médio, ocorre
atualmente um êxodo do “melhor da juventude israelense”, os mais cultos, os
melhores profissionais. Quem diria que, algum dia, Berlim, Londres e Nova
Iorque se tornariam foco de jovens israelenses que perderam as esperanças no
futuro do país, assaltado por ultranacionalistas e religiosos que acreditam
realmente em Judéia e Samaria?
É ridícula a tentativa de condenar a artificialidade do
Estado de Israel, afinal, todos os Estados nacionais são uma invenção
simbólica, são “comunidades imaginadas”, conforme expressão de Benedict
Anderson. No entanto, o que parece anacrônico no discurso dos defensores “diaspóricos”
de um Estado de Israel definido étnica e/ou religiosamente é a incompreensão de
que sua existência só pode ser compreendida historicamente. Na contramão da
História, Israel surgiu quando impérios se desmoronavam e a ideia de estados
nacionais era cada vez mais contestada por minorias culturais discriminadas. O
multiculturalismo ganhava força, as mulheres começavam a queimar sutiãs em
praça pública, os Panteras Negras cerravam os punhos nas Olimpíadas.
O discurso que prega a máxima “Um Povo, Uma Terra” cheira a
naftalina. É, no mínimo, ingenuidade acreditar que a existência de fronteiras
físicas seja capaz de impedir o extermínio de um povo ou, pelo menos, parte
substancial dele. Como não se lembrar de Hiroshima e Nagasaki? Há, por trás
disso tudo, o medo do “outro”, o receio de que o “outro” é mal por natureza e
que o “nós” não faz parte da sociedade e não é corresponsável por tudo o que
acontece à sua volta. O “nós” está apenas de passagem. Ao vislumbrar apenas
“fora” a solução dos problemas, as potenciais vítimas estão sempre reproduzindo
o discurso da autoexclusão em vez de tentar solucionar os problemas de “dentro”.
É muito confortável assistir de camarote a degradação de uma sociedade se esta
sociedade é a nossa, mas nem tanto...
Como judeu, é incômodo, para mim, ouvir que o Estado de
Israel é importante porque, caso haja uma onda de antissemitismo no Brasil, é
para lá que devo ir salvando minha pele. A impressão que tenho quando ouço este
tipo de discurso é que só se olha para o próprio umbigo, para os próprios
interesses, como se não houvesse a possibilidade de lutar por interesses em
comum, o maior deles sendo o respeito às diferenças, quaisquer que sejam elas,
no lugar onde se vive.
Por que não lutar por uma sociedade brasileira culturalmente
democrática? Por que não lutar pela cidadania cultural? Por que este egoísmo,
esta indiferença, quando o calo que aperta não é o nosso? Por que é tão difícil
ser solidário com o sofrimento do “outro”? E se este “outro” não tiver um porto
seguro para onde seguir, devemos lavar as mãos? Cada macaco no seu galho?
Se eu decidisse emigrar para Israel, possivelmente teria
grande desgosto em ver como a religião contamina a tudo e a todos, e, se não
tomasse cuidado, seria agredido em qualquer manifestação pública pela devolução
dos territórios palestinos ocupados ilegalmente. Se meus agressores
descobrissem que sou um judeu ateu, meu destino poderia ser, quem me garante o
contrário?, o mesmo daquele palestino queimado vivo. Minha existência enquanto
judeu está mais protegida aqui do que lá.
Em tempos de pós-nacionalismo devemos, todos nós, assumir
nossa identidade de judeu errante, cidadão do mundo.
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