Inimigo interno

No clássico O homem marginal, Everett Stonequist afirma que, quando os muros do gueto medieval foram postos abaixo e ao judeu foi permitido participar da vida cultural dos povos no meio dos quais vivia, apareceu um novo tipo de personalidade, um híbrido cultural. Era um homem que participava intimamente da vida e das tradições culturais de dois povos distintos, não querendo romper completamente com o seu passado e tradições e não sendo aceito inteiramente pela sociedade que abria suas portas. Era um homem à margem de suas sociedades e duas culturas. O judeu emancipado é, nesta visão, o primeiro cosmopolita e cidadão do mundo, o “homem marginal” por excelência.

Uma alternativa às interpretações dadas por Stonequist ao fenômeno da marginalidade em indivíduos portadores de tradições distintas pode ser a própria noção de “cosmopolitismo”. Em tempos de “pós-nacionalismo”, ser cosmopolita e “estrangeiro de tudo” é um trunfo social. Falsas dicotomias desaparecem, por exemplo, “judeu ou brasileiro”, cada uma destas identidades sendo exercidas em circunstâncias específicas ou misturadas. Em épocas de Copa do Mundo de futebol, judeus cariocas vestem a camisa da seleção brasileira, ao mesmo tempo em que um grupo de amigos forma uma comunidade virtual intitulada “judeus flamenguistas”. É a pura bricolage profanando o sagrado, destruindo e reconstruindo fronteiras sociais. Identidades complementares, não mais antagônicas.

A noção de identidade como uma “celebração móvel”, nas palavras de Stuart Hall, encaixa-se perfeitamente no caso dos imigrantes judeus e seus descendentes no Brasil. Não mais circunscritos às fronteiras comunitárias, criam os mais diversos vínculos com os mais diferentes estilos de vida, o que não invalida seu pertencimento ao judaísmo, pois têm a percepção de que é possível exercer múltiplas identidades na sociedade contemporânea. Nas palavras de um judeu carioca, casado com uma não-judia (o casamento fora dos muros da “comunidade” é considerado pelo mainstream como traição e indiferença à etnia) , “eu sou brasileiro e judeu, ou sou judeu e brasileiro; vai depender um pouco do momento em que eu esteja, que eu precise me posicionar”.

A opção antagônica ao cosmopolitismo é o reforço dos muros do gueto. O preço a ser pago pelo individuo ao escolher “viver em comunidade”, na opinião do sociólogo Zygmunt Bauman, se dá na forma da liberdade, também chamada de autonomia, direito à autoafirmação e identidade. A “comunidade”, espaço físico, mas, sobretudo, moral, cumpre o papel de controlador dos movimentos do indivíduo na medida em que este indivíduo se submete às regras do grupo por livre e espontânea vontade.

A “comunidade” significa mesmice, a ausência do “outro”, especialmente aquele que teima em ser diferente e, por isso mesmo, capaz de gerar incertezas quanto à validade única dos princípios que regem os padrões de comportamento do lado de dentro da “comunidade”. Este “outro” está fora do lugar, desafiando a estabilidade ontológica. A “mesmidade” encontra dificuldades quando há “fissuras” nos muros de proteção da “comunidade” e são abertas as portas para o novo, aquilo que ainda não foi experimentado, para a busca do desconhecido.

No atual conflito envolvendo israelenses e palestinos observamos um exemplo concreto do embate entre “comunidade” e cosmopolitismo, pelo menos em dois pontos. Vejamos:

Em primeiro lugar, as vozes internas dissonantes com relação ao posicionamento oficial da maioria dos judeus brasileiros, de defesa incondicional das ações do governo israelense, são imediatamente rotuladas de “antissemitas” e “self-haters”. São judeus que se odeiam, são judeus não-judeus. A desqualificação do “outro” é uma estratégia de defesa dos muros comunitários, cuja voz não pode ser polissêmica sob pena de esfacelamento do grupo. O “outro” deve ser extirpado, é como uma doença que precisa ser eliminada para que não contamine o restante do corpo.

O diálogo, por sua vez, só é possível quando há um reconhecimento do oponente como “outro significativo”, como alguém cujas ideias merecem respeito, como um igual. A desqualificação das ideias do oponente através da acusação, sejam elas quais forem, é sinal de arrogância, prepotência e intolerância. Na verdade, mostra uma tremenda insegurança, típica dos que têm dificuldade de convívio com a diferença, pela possibilidade de confrontação de argumentos e, no limite, desmonte das certezas inexoráveis.

Como bem colocou Breno Altman em recente artigo no jornal Folha de São Paulo, a equivalência entre antissionismo (ou não sionismo, eu acrescentaria) e antissemitismo é “conveniente cláusula para a interdição do debate: não seria possível confrontar as ideias de Theodore Herzl sem se confundir com os que levaram seis milhões de judeus ao extermínio”. É bom lembrar que a metáfora biológica, do corpo são ameaçado, foi utilizada pelo regime nazista contra os judeus alemães.

Em segundo lugar, o discurso do medo e da eterna vigilância predomina no ambiente interno. Nas eleições para cargos eletivos é comum observarmos, como a principal plataforma de campanha de candidatos que se apresentam como judeus, a defesa da comunidade judaica contra todo e qualquer ato antissemita. Afinal, é melhor prevenir do que remediar. Temas caros à cidadania, como melhorias no sistema de transporte, na educação, na saúde ficam em segundo plano. Muitas vezes, o próprio partido do candidato sequer aparece nos panfletos distribuídos nas ruas, deixando-se claro que a orientação ideológica há muito deixou de ser um norteador do fazer político.

A grande política foi trocada pela pequena política, caracterizada pela indiferença ao outro, pelos interesses imediatos do grupo ao qual o candidato está vinculado, por uma restrição à noção de cidadania. O medo ergue os muros do gueto novamente porque impede uma visão mais ampla dos problemas que afligem a sociedade, revela uma cegueira moral em relação ao sofrimento do “outro” e inibe a independência da reflexão, da crítica construtiva e da contestação do status quo sob pena de marginalização. Vangloria-se, portanto, a mediocridade intelectual.

Segundo reportagem do jornal O Globo do dia 03 de agosto, em recente manifestação pública a favor de Israel, no calçadão da praia de Copacabana, um dos participantes rasgou o cartaz de um jovem judeu que defendia pacificamente o fim da ocupação dos territórios palestinos. A agressão (rasgar o cartaz) por si só, admitida pelo próprio agressor, já é condenável, ainda mais em se tratando de vereador judeu que estava ali para defender a paz e o diálogo.

Combater a intolerância com intolerância. Será esta a melhor opção para o fortalecimento da identidade judaica no Brasil? Será esta a melhor opção para construção de uma sociedade democrática, onde a diferença não é um estigma, mas uma qualidade a ser exaltada?


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