O discurso do medo: versão étnica

Virou moda, nas campanhas eleitorais brasileiras, o “discurso do medo”. Quem não se lembra da atriz Regina Duarte na campanha presidencial de 2002, no programa de televisão do então candidato José Serra (PSDB), olhando fixamente para a câmera e afirmando "Estou com medo. O Brasil corre o risco de perder a estabilidade. Não dá para jogar tudo na lata do lixo. O Serra eu conheço, sei o que vai fazer. O outro (Lula) eu achava que conhecia. Isso dá medo na gente. Medo da inflação desenfreada de 80% ao mês"? Na campanha presidencial deste ano, a candidata à reeleição, Dilma Rousseff, cujo partido sofreu os ataques há doze anos, também faz uso deste artifício quando, nas redes sociais, alerta para o perigo da volta daqueles que “trouxeram o racionamento de energia”, o desemprego e o arrocho salarial.
O “discurso do medo”, no entanto, não se faz presente apenas nos debates sobre política econômica, recursos hídricos e empregabilidade, estendendo-se, no varejo, de acordo com os interesses provincianos dos candidatos.
Recebi, há alguns dias, propaganda eletrônica do candidato a deputado estadual (Rio de Janeiro) pelo PSDB, Gerson Bergher. Em letras azuis destacadas lê-se “É hora de muita reflexão e responsabilidade”. Em seguida, em letras menores, o que realmente interessa: “O governo do PT é contra Israel, logo não é a favor dos judeus. Votar em candidatos do PT é votar contra nós. Na luta contra o antissemitismo e na defesa da Comunidade, uma voz jamais se calou, GERSON BERGHER”. A propaganda do candidato merece alguns comentários.
Observa-se o apelo a um suposto “voto étnico”, em que o candidato se apresenta como legítimo representante do grupo ou “comunidade”, conforme termo nativo utilizado para caracterizar aqueles que pertencem à etnia. Ele funciona como o “judeu de corte”, figura comum na Idade Média, que intermediava a relação entre os monarcas e a população judaica miserável, que dele ficava a depender, versão do clientelismo político contemporâneo. 
A defesa dos interesses comunitários diz respeito, sobretudo, à luta contra antissemitismo, sempre à espreita. A cidadania, no discurso provinciano, é restrita à identidade étnica, ignorando questões que influenciam de modo direto o cotidiano dos potenciais eleitores, como investimentos em saúde, educação, cultura, segurança pública, corrupção. A universalidade da cidadania é trocada pelos interesses particulares. Neste sentido, não difere muito dos candidatos que baseiam sua plataforma na defesa de grupos específicos (negros, homossexuais, animais, evangélicos). Por que não propor a luta contra todo e qualquer tipo de preconceito? Será que apenas judeus podem proteger judeus? Será que não judeus não podem estar imbuídos de valores, como o respeito à diferença, que funcionem como um guarda-chuva das proteções constitucionais do cidadão brasileiro? Não judeus são potenciais antissemitas tanto quanto os judeus são potenciais anti qualquer coisa.
O candidato estabelece uma relação inevitável entre Israel e os judeus. É um equívoco. Nem todo israelense é judeu, e nem todo judeu é israelense. Para muitos judeus, como eu, a identidade judaica não passa por Israel como referência simbólica. Nem por isso sou antissemita, ainda que seja acusado de “self-hating jew”, judeu que se odeia, doença que apenas um bom psicanalista resolveria.
O candidato utiliza um discurso do medo que é senso comum no establishment judaico brasileiro, de que qualquer posicionamento contrário à política israelense é considerado “antissemitismo”. Aliás, o candidato confunde “Israel” com “política israelense”, quando acusa o PT de ser contra “Israel”. Até onde se sabe, as críticas feitas pelo partido dizem respeito às ações do governo israelense frente à questão palestina. Ainda que o discurso fosse antissionista, a acusação de “antissemitismo” seria despropositada, na medida em que o judaísmo (ou a identidade judaica) não está atrelado, inexoravelmente, à existência de um Estado judeu. Há judeus antissionistas, caso o candidato não saiba.
Atribuo a propaganda alarmista ao desespero de final de campanha eleitoral, ao perceber que suas chances eram remotas. O apelo à solidariedade étnica, ao gueto voluntário, não foi suficiente. O candidato não foi eleito.

Antissemitismo é crime. O PT foi acusado deste crime. Há, apenas, duas alternativas: condenação ou retratação do acusador.  

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