Símbolo do chamado “Estado Mínimo”, o
conjunto de leis de incentivo fiscal para a área da cultura, popularmente
conhecido como Lei Rouanet, vem sendo repensado pelo Ministério da Cultura há
vários anos. Numa série de encontros intitulada Diálogos Culturais, em 2008, o
então Ministro Juca Ferreira apresentou à sociedade civil a proposta de
reformulação da lei, apontando as distorções do modelo de financiamento atual. Alguns
exemplos: de cada dez reais captados, nove são de recursos públicos de
incentivo fiscal; 3% dos proponentes captam cerca de 50% dos recursos; a região
norte capta menos de 1% dos recursos; a região sudeste capta 80% dos recursos e,
destes, apenas 1% é captado pelo estado do Espírito Santo. O modelo atual, ainda
de acordo com o diagnóstico do MinC, exclui a inovação, a gratuidade e os
projetos sem retorno de marketing; não fortalecem a sustentabilidade do mercado
cultural; inibe a percepção de que os recursos são públicos; não promove a
democratização do acesso aos bens culturais.
A proposta de reformulação da Lei Rouanet
previa novos critérios para a renúncia fiscal, dentre eles:
1. Critérios específicos para incentivar a
criação, a democratização do acesso e a economia da cultura;
2. Quanto mais orientado às políticas
públicas, maior a renúncia fiscal;
3. Quanto mais orientado à democratização do
acesso, maior a renúncia fiscal;
4. Todos os segmentos culturais com alta
pontuação podem receber 100% de renúncia;
5. Empresas que realizam editais serão
beneficiadas com mais renúncia fiscal;
6. Criação de um sistema nacional de
informações de incentivos;
7. Aumento do percentual de renúncia fiscal
para pessoa física (10%)
8. Pelo menos 20% para produção independente,
no caso de institutos ligados a patrocinadores.
E, também, novos atrativos para os
patrocinadores:
1. Ranking das empresas que mais investem;
2. Maior visibilidade para maior
participação privada;
3. Selo de responsabilidade cultural;
4. Quanto maior a participação privada, maior
a participação nos produtos.
As distorções já viraram motivo de chacota. É
comum o colunista Ancelmo Góis, do jornal O Globo, informar ao público que tal
ou qual produtora teve projeto aceito para captação de recursos públicos via
renúncia fiscal, dinheiro “meu, seu, nosso”, nos dizeres do próprio jornalista.
Na maior parte das vezes, o objetivo da nota publicada é denunciar a farra com
o dinheiro público, espetáculos de gosto duvidoso ou de artistas que não
precisam de ajuda do Estado porque já estabelecidos no mercado (o Cirque Du Soleil,
por exemplo). Há, ainda, casos de espetáculos financiados por empresas que, claramente,
têm condições de bancá-los sem a bengala do poder público, como é o caso da
Árvore de Natal da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, patrocinada
pelo Bradesco.
Novamente à frente do Ministério da Cultura,
Juca Ferreira volta a cutucar a onça com vara curta. O projeto de reforma da
Lei Rouanet, conhecido como Procultura, aguarda análise do Sendo Federal, e sua
versão inicial foi modificada. O ministro usa dados do IBGE e do IPEA para
justificar a necessidade de ajustes:
1. Apesar dos milhares de projetos
analisados pelos técnicos do MinC, apenas 20% conseguem captar de recursos;
2. 80% estão concentrados em dois estados, Rio
de Janeiro e São Paulo;
3. Dentro destes dois estados, 60% ficam nas
respectivas capitais;
4. Os proponentes que captam são, geralmente,
os mesmos, aqueles que dão retorno à imagem da empresa que patrocina.
Juca Ferreira é direto ao afirmar que o
mecanismo, da forma como é utilizado hoje, nada mais é do que a privatização de
recursos públicos para construir imagens de empresas, algumas delas altamente
lucrativas (como o caso citado acima, da Árvore de Natal da Lagoa Rodrigo de
Freitas). Ele não é contrário à renúncia fiscal, mas defende que 20% dos atuais
100% sejam destinados ao Fundo Nacional de Cultura, que deve atender a
programas e projetos definidos a partir de políticas públicas. Em entrevista
concedida ao O Globo, Juca se defende de possíveis acusações de “dirigismo
cultural” ao assegurar recursos para o Estado, e não concedidos de mão beijada
ao mercado.
"Dirigismo cultural é feito também pelo
mercado. Temos uma hipersensibilidade para o dirigismo público e nenhuma
sensibilidade para o dirigismo de mercado. É preciso ter essa sensibilidade
para ambos os lados, porque os dois são perversos. E a possibilidade de
corrigir um dirigismo público é repetir o que é feito na Ancine, no Fundo
Setorial do Audiovisual. Com a participação da sociedade, com transparência, com
lisura política, não dentro do balcão de uma repartição. Não rejeito a parceria
público-privada. Basta olhar meu trabalho recente (como secretário municipal de
Cultura) em São Paulo. Trabalho com instituições privadas. Agora, colocar tudo
para o outro decidir, não existe. É uma distorção do governo Collor. (O Globo, 06
de fevereiro de 2015)"
O repórter de O Globo se utiliza, então, de
um argumento bastante comum nas discussões sobre a reforma da Lei Rouanet, o de
que, ao propor um diálogo com o mercado e não mais um “passe livre” para a
apropriação de recursos públicos, o Estado brasileiro seja abandonado pela
iniciativa privada, uma vez que a mudança vai, nas palavras do repórter, “desequilibrar
o mercado”. Como o “mercado” já está desequilibrado, isto não será um problema.
Ademais, este tipo de chantagem pode sair pela culatra, conforme o ministro.
"Vamos supor que isso seja verdade e
que, temporariamente, aconteça. Na transição, o dinheiro que se tinha
continuará se tendo. Essa é a questão. Mesmo que um ministro malvado
inviabilize a parceria público-privada, 100% (dos impostos) estarão com o poder
público de toda forma e serão destinados à cultura. Não vamos perder nada. Se
houver represália por parte de quem se associa ou por parte de quem usa a lei, eles
perdem, deixando de se associar a um grande ativo."
Para além do fantasma do dirigismo estatal, que
em nada contribui para o florescimento da diversidade cultural brasileira, e do
culto ao mercado, cuja “mão invisível” tem a pretensão de harmonizar relações
intrinsecamente conflituosas, devemos esperar que a reformulação da lei de
incentivo à cultura beneficie, sobretudo, quem está numa das pontas do processo,
artistas e consumidores. Afinal de contas, a razão de ser da lei é a
democratização da produção, do acesso e da fruição dos bens culturais, e não o
lucro financeiro dos investidores, apenas uma de suas conseqüências.
Submissão ao mercado, não. Diálogo, sim. A
sociedade tem de cobrar.
Coragem, ministro.
Também disponível em:
cartamaior.com.br
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