Rio de Janeiro: escombros de uma cidade

Esperando o ônibus de volta para casa depois de uma consulta médica e de levar meu filho de quase seis a um dos poucos parques infantis do bairro de Copacabana, a outrora "Princesinha do Mar", percebi que tinha apenas uma nota de cinquenta reais na carteira. Imaginando que o trocador do ônibus faria cara feia e não aceitaria a nota (talvez mesmo não tenha obrigação de aceitá-la), resolvi ir a uma grande papelaria localizada em frente ao ponto para tentar trocá-la. O gerente afirmou, estranhamente, que não tinha duas notas de vinte reais e uma nota de dez reais, mas "acreditei", agradeci, e segui para uma padaria a cinquenta metros de distância.

Imaginei que, consumindo cem gramas de pão de queijo, um dos lanches favoritos do meu filho, a troca seria feita sem problemas. Ao apresentar a maldita nota de cinquenta reais, a atendente perguntou se eu não possuía cartão de débito ou mesmo nota de menor valor para pagar a conta de quatro reais e dez centavos. Disse a ela que precisava trocar os cinquenta reais para voltar para casa. Sem olhar na minha cara, a atendente perguntou se não era mais fácil simplesmente pedir a troca da nota em vez de consumir algo e forçar ou obrigar o estabelecimento a dar o troco. Devolvi a petulância dizendo que outra loja já me havia negado o troco da nota e que, além do mais, estava consumindo um produto da padaria, estava gastando meu dinheiro ali, o que deveria gerar um agradecimento do funcionário. Sem nunca olhar na minha cara, a atendente jogou três notas e algumas moedas em cima do balcão.

Tentei compreender o porquê daquele comportamento, daquela agressividade. Quem sabe a funcionária passa por problemas familiares ou apenas acordou de mal com a vida. Mas será que ela não se importa em ser chamada a atenção pelo gerente, caso o cliente faça uma reclamação, ou mesmo ser demitida? Será que ela não compreende que, por conta de sua falta de profissionalismo e de qualificação profissional (qual o nível educacional para ser caixa de padaria?), o máximo que vai conseguir é ser caixa de padaria (sem julgamento moral, por favor)? Será que ela não compreende que passamos por uma crise econômica e que emprego é artigo de luxo? Ou será que empregos formais que exigem pouca ou nenhuma qualificação estão sobrando? Talvez estejam, mas, perto desta padaria, outra fechou as portas ontem mesmo. Canja de galinha...

Contrariado, voltei para o ponto e tomamos o primeiro ônibus que nos deixa perto de casa. Dei o dinheiro à trocadora e desejei-lhe "bom dia", recebendo o silêncio como resposta. Que coincidência, outra que acordou de mal com a vida. O bairro do Flamengo, onde moramos, está coalhado de meninos de rua cheirando cola e assaltos a pedestres, a mão armada, em pena luz do dia, estão se tornando corriqueiros. Em frente ao nosso prédio, a pracinha revitalizada teve seu chafariz centenário cercado por grades de ferro para evitar que vândalos o destruam durante o carnaval, que se aproxima. Começo a me deprimir. Também na pracinha, o parquinho para as crianças está desfalcado do balanço. Há poucos dias, por falta de manutenção por parte da Prefeitura da cidade e do mau uso por parte dos freqüentadores, ele despencou em cima de uma menina de quatro anos, que foi parar no hospital. Guimbas de cigarro e cacos de vidro são figurinhas carimbadas nas areias do parquinho no dia seguinte às noitadas da pracinha, circundada por bares.

Posso ter dado azar com a atendente impertinente da padaria e com a trocadora surda-muda do ônibus, mas receio que não. Quando penso em qualidade de vida para mim e minha família, não penso no Rio de Janeiro como um sonho de consumo. E olhe que moramos na zona sul da cidade, área "nobre". Moramos numa área ainda não dominada por milícias ou pelo tráfico de drogas como nas "comunidades" ("comunidade" dá um ar bucólico e pacífico, infelizmente longe do cotidiano de sua população), termo politicamente correto para "favelas".

Caminhando com minha esposa pelo bairro da Urca, um oásis de tranquilidade no meio da selva urbana, viemos discutindo a possibilidade de sair do Rio de Janeiro em busca de paz, da possibilidade de andar na rua sem medo de levar um tiro na cabeça, de ter de volta a cidadania roubada, vilipendiada. Colocando na balança os prós e os contras de viver no "Rio quarenta graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos", nas palavras de Fernanda Abreu, pensei em algumas sugestões para aqueles que querem ficar por aqui, sejam ou não cariocas da gema ou turistas que querem vivenciar o "ser carioca" por alguns dias. A lista está em aberto, porque é interminável.

- Acostume-se a ser achacado por taxistas inescrupulosos ao desembarcar no aeroporto internacional.

- Acostume-se com o cheiro pútrido que emana dos canais poluídos banhados pela baía de Guanabara no trajeto que leva do aeroporto ao centro da cidade ou a qualquer outro ponto.

- Acostume-se com a degradação visual dos prédios e monumentos históricos, boa parte deles pichados e mal conservados.

- Acostume-se com a sujeira das ruas e calçadas, apesar das lixeiras espalhadas por todos os cantos.

- Acostume-se a desviar das poças de cuspe que as pessoas costumam lançar nas calçadas.

- Acostume-se a desviar das secreções nasais (meleca) que muitos teimam em depositar nas calçadas, num espetáculo asqueroso.

- Acostume-se a conviver com meninos de rua cheirando cola a qualquer hora do dia ou da noite.

- Acostume-se a ficar ilhado em casa, no trabalho ou em algum comércio de rua quando chove um pouco (um pouco mesmo) mais forte, porque o sistema de escoamento está em colapso. A população ajuda, ao jogar lixo nos bueiros.

- Acostume-se a viver numa das cidades mais caras do mundo e a mais cara do Brasil (98º posição no ranking mundial, segundo reportagem da Folha de São Paulo, de 08 de dezembro de 2014).

- Acostume-se a conviver com restos de comida e embalagens plásticas nas areias das praias da orla da cidade, apesar das lixeiras que a companhia de limpeza urbana dispõe aos usuários.

- Resigne-se, caso seja turista, a ser extorquido por barraqueiros que cobram preço diferenciado para o aluguel de barracas e cadeiras.

- Acostume-se a não atravessar a rua na faixa de pedestres antes de certificar-se que os carros estão realmente parando ao sinal vermelho. Por via das dúvidas, olhe para os dois lados porque, em alguns casos, carros vêm na contramão.

- Acostume-se com engarrafamentos a qualquer hora do dia ou da noite.

- Acostume-se, caso esteja grávida ou carregue uma criança pequena no colo, a não ter cedido o lugar no ônibus ou metrô por indivíduos que fingem dormir ou simplesmente porque não têm sensibilidade e compreensão do conceito de "cidadania". O mesmo vale para filas de banco.

- Acostume-se com o péssimo serviço oferecido em bares e restaurantes em geral, onde os funcionários se comportam como se estivessem fazendo um grande favor ao anotar os pedidos. Estamos no pleno emprego?

- Acostume-se com o despreparo e truculência da Guarda Municipal, que agride vendedores ambulantes sem autorização para atuar em blocos de carnaval ou qualquer outro espaço público, geralmente tais vendedores sendo não-brancos, e fazem vista grossa para outros ambulantes também sem autorização, porém de pele e olhos claros (fomos testemunha disso, ninguém nos contou).

- Acostume-se com a falta d'água e falta de luz por falta de planejamento, aliada à incompetência e corrupção dos gestores públicos.

- Acostume-se, turista estrangeiro, ao despreparo dos prestadores de serviço em comunicar-se na língua franca internacional, o inglês, queiram ou não os xenófobos de plantão. Isto apesar de a cidade ter, como uma de suas fontes de receita mais importantes, o turismo.

- Acostume-se a pagar R$ 3,40 pela passagem de ônibus.

- Acostume-se a pagar, em qualquer birosca, quarenta ou cinqüenta reais por um prato de frango com arroz, batata frita e farofa.

- Acostume-se a olhar para baixo ao andar nas calçadas, sob pena de tropeçar, cair e torcer o tornozelo.

- Acostume-se a desviar de carros estacionados sobre as calçadas e parados em cima da faixa de pedestres.

- Resigne-se a pagar um plano de saúde porque, apesar das afirmações de um ex-presidente da república, o sistema público de saúde não beira a perfeição, mas é fonte de vergonha alheia. O mesmo vale para a educação. Claro, com as exceções de praxe.

O Rio de Janeiro é uma cidade hostil. A cordialidade do carioca, seu bom humor, sua "joie de vivre", é um mito, uma lenda urbana. O que há é aquele homem cordial de que nos fala Sergio Buarque de Holanda, aquele cara que não consegue viver com sua subjetividade, sua intimidade, sua vida privada, tem a necessidade de invadir o espaço do outro. Como aquelas pessoas que ficam puxando papo na fila do supermercado para suportar melhor a angústia da espera. Há exceções, claro, talvez aos milhares, eu incluído. Mas me atrevo a afirmar que o padrão de comportamento atual por estas bandas é o do "levar vantagem em tudo" e não se importar com o entorno, com os outros, de demolir as fronteiras entre interesse privado e respeito ao bem público. Os outros são inimigos, prontos a atacar. É o individualismo levado às últimas conseqüências. Certa vez, João Ubaldo Ribeiro escreveu: "Pertenço a um país onde a gente se sente o máximo porque conseguiu "puxar" a tevê a cabo do vizinho, onde a gente frauda a declaração de imposto de renda para não pagar ou pagar menos impostos". Perfeito.

Os prós de se viver no Rio de Janeiro são... Bom, sugestões são bem-vindas.


O último que sair apague a luz.




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