Certo dia, num parque perto de casa, nosso
filho encontrou um colega da escola acompanhado de sua avó. Essas coincidências
são ótimas, tanto para os pais, que podem descansar um pouco a coluna dos jogos
e brincadeiras inventados pelos filhos, quanto para os próprios filhos, que
podem se divertir com companheiros da mesma idade e com igual disposição para
correr de um lado para o outro. Sentamos no banco, eu e a avó, observando filho
e neto no balanço, na gangorra, chutando a bola de futebol. Num dado momento, aproximou-se
de nós uma criança, um menino, mais especificamente, da mesma faixa etária dos
nossos, brincando com o pai, com asinhas de fada. A reação da avó foi quase
instantânea, de reprovação, “que pouca vergonha”, “onde já se viu, onde
estamos”, “que absurdo”. Eu permaneci calado, pusilânime, admito. O colega de
meu filho deu uma risadinha e apontou o dedo denunciador quando percebeu as
asinhas; meu filho não reagiu desta forma que, nas crianças, pode ser mortal e
traumática. Observando o pai do menino, percebi, talvez erradamente, seu
constrangimento, sua vergonha. Talvez constrangimento pela ignorância alheia, vergonha
alheia. Mas ele estava desconfortável, isto era perceptível, porque sabia que
as feras estavam à espreita, observando a presa indefesa, prontas para comê-la
moralmente. Quem sabe este pai é, ao contrário, forte o suficiente, moralmente
superior, para aguentar o desprezo de que é alvo, junto com seu filho. As
aparências enganam. Senti-me culpado por não tido qualquer reação contrária ao
espetáculo de ignorância e preconceito daquela senhora machadiana, obesa e
cheia de varizes. Opa... Olha o preconceito de novo, por aqui. Quem com ferro
fere...
Mal sabe (ou será que sabe?) a simpática
vovó que uma das professoras de seu neto é lésbica. Não, a professora não
anunciou aos sete ventos sua orientação sexual, tampouco tentou seduzir os
alunos, como devem imaginar os homofóbicos que confundem criminosamente
homossexualismo com pedofilia. Ninguém sai por aí anunciando suas preferências
sexuais, também não devemos esperar que a professora o fizesse apenas porque
sua opção não é a mais comum, embora não seja “antinatural” ou “anormal”. A
unanimidade é burra. Foi num churrasco da turma que o segredo foi revelado para
bons observadores da vida alheia. Chegou acompanhada de uma moça, até aí nada
de mais, exceto, talvez, as mãos dadas por baixo da mesa, mãos tímidas. Embora
num ambiente amigo, não hostil, formado por pais cuja mentalidade está longe
daquela característica dos homens das cavernas, intolerantes, o alerta não
desligou em momento algum, nenhum beijo foi dado ou roubado. A vergonha era
patente, a repressão estava ali, presente. A professora foge do estereótipo das
lésbicas, masculinizadas. Minha mulher já revelou que, lésbica fosse, estaria
apaixonada, o mesmo diria eu.
Eis que no dia 28 de fevereiro, na Praça São
Salvador, tradicional local de convivência entre diferentes, sejam eles sexuais
ou culturais, um casal gay foi covardemente agredido porque, pecado dos pecados,
expressava seu amor com um beijo. O casal foi alvo de xingamentos e de garrafas
e copos de vidro. O vereador Renato Cinco recebeu a denúncia da agressão
homofóbica e, do púlpito do plenário da Câmara de Vereadores da cidade do Rio
de Janeiro, relatou o seguinte, nas palavras de uma testemunha:
Enquanto uma amiga comemorava o aniversário
em um bar na Praça São Salvador, um casal gay era agredido em frente. Dois
homens tripudiaram e jogaram uma garrafa em cima deles. O casal pediu ajuda ao
guarda municipal, que nada fez. Ainda na frente do guarda, um dos homens socou
a cara de um dos meninos que fora pedir ajuda. Eles também pediram ajuda à
patrulha da PM que fica na praça, que nada fizeram, só orientando a dar queixa
na 10ª DP. Indignados, os convidados do aniversário resolveram promover um
beijaço, que mal começou e já sofreu represália dos agressores. Gritavam
palavras chulas, jogavam cerveja, até darem uma garrafada em um dos manifestantes.
Partiram para socos e pontapés em todos os envolvidos no beijaço. Novamente os
policiais da praça foram chamados e, de maneira impressionante, foram
coniventes com os agressores, coibindo os agredidos, meio que recriminando as
pessoas que estavam denunciando as agressões. Não é fácil perceber quando uma
agressão ocorre pela falta de compreensão do que é o outro. Todo agressor parte
de verdades inquestionáveis. Por isso, não há palavra que o segure! Ontem foi a
primeira vez que o ódio chegou perto de mim e dos meus. Conheci a raiva
direcionada ao que não se compreende ou se aceita. No momento em que acontece, duas
reações e reflexões passam pela cabeça. A primeira é de se entregar ao medo e
ficar calado, colocar o rabo entre as pernas e fazer, exatamente, o que manda o
agressor: excluir-se! A segunda é de tentar transformar o medo em uma espécie
de coragem, para conseguir tirar qualquer tipo de força para gritar, unir-se
aos seus e buscar, minimamente, mudar qualquer coisa! Foi isso que se passou
ontem: o medo encontrou a sorte e a coragem! Dois passaram a ser muitos! E uma
esperança de justiça aconteceu ali, naquela praça mesmo! O primeiro julgamento
para os agressores foi ter que assistir iguais e diferentes entre beijos! O
próximo será por vias tradicionais! (grifos meus, depoimento editado).
Como reação à barbárie perpetrada por
trogloditas enrustidos, aconteceu, na última sexta-feira, o “Beijaço na Praça”,
que contou com dezenas de casais gays, lésbicos e héteros. Após a leitura de um
manifesto de repúdio às agressões, os ativistas foram até a frente do bar onde
ocorreu o episódio que desencadeou o ato, e explicaram aos frequentadores o
motivo do movimento. Às 20h, no momento do beijo, os usuários do bar aplaudiram
a iniciativa. Uma faixa foi colocada na porta do estabelecimento que dizia “A
Casa Brasil apoia a campanha contra a homofobia”. Na hora do beijaço, foram
projetadas frases feitas pelos manifestantes como “Casa Brasil, homofobia é
crime” e “Eu beijo quem eu quiser”. Foi distribuído um manifesto aos
frequentadores da Praça São Salvador e a todos que passavam por ali, que dizia,
entre outras coisas, o seguinte:
Diante de incessantes demonstrações de
intolerância com a comunidade LGBTI, manifestamos nosso repúdio ao silêncio, indiferença
e conivência da sociedade diante de agressões contra a nossa comunidade por
meio de uma frente de combate à LGBTIfobia, na qual se reúnem coletivos e
ativistas que advogam por uma sociedade livre de exploração e qualquer tipo de
preconceito. A frente tem como objetivo ocupar e denunciar os espaços em que
ocorrem violência contra LGBTI na cidade do Rio de Janeiro e região
metropolitana, marcando esses lugares com nossos corpos, beijos, adesivos e
purpurina, mostrando nosso afeto, nossa luta e nossa resistência. Não haverá
mais guetos! Somos todos iguais nas nossas diferenças. Somos lésbicas, somos
gays, somos bissexuais, somos travestis, somos transexuais, somos intersexuais.
Nossa família heterossexual estava no ato. Encontramos
a professora, que vestia uma blusa com a palavra “gay”. Encontramos também
amigos de nosso filho, com os pais. As crianças adoram a professora, sobem no
seu colo. Dali a pouco, sua namorada (ou o que quer que seja, quem se importa
com rótulos) chegou. No chão da Praça, escrito com giz colorido, a frase “amar
é um direito humano”. Nosso filho aproveitou para atormentar a mãe, escrevendo
que a amava e que ela também era “chata”. Eu tive de procurar no Google o
significado de “intersexual”, tenho de me atualizar nesta área. Os organizadores
do evento compreenderam bem que ocupar o espaço público é a única forma
possível de resistir à exclusão social, de afirmar a cidadania que implica, além
dos deveres, o direito de exercer sua sexualidade como bem lhe aprouver sob a
proteção do Estado, que, aparentemente, não ocorreu no dia 28 de fevereiro. A
Praça, aqui, tem forte simbolismo porque representa o espaço público, onde a
diferença na igualdade pode e deve ser expressa.
Um dos pais acha que a geração de nossos
filhos viverá um mundo mais democrático, aberto à diversidade, em comparação ao
mundo em que nós e nossos pais vivemos. Sou cético quanto ao futuro porque a
cada ação no sentido de “sair da casca”, de libertar-se da opressão moral, ocorre
uma reação com igual ou maior força. Simples questão física. E a luta ficará
cada vez mais encardida, porque as forças que lutam pela manutenção do status
quo, que partem, conforme o relato lido pelo vereador, de “verdades
inquestionáveis” e morrem de medo de ter de pensar como o próprio intelecto, de
sair da zona de conforto, adoram a “constância e impenetrabilidade da pedra”, nas
palavras de Sartre em sua análise do racismo e do racista. Talvez eu esteja
enganado, e os desbravadores de agora permitam que as gerações futuras vivam
num mundo mais feliz. No fundo, tudo se
resume à procura da felicidade, do amor, e quem tem o direito de dizer como eu
devo ser feliz, como devo amar?
A caminho de casa, trazendo meu filho da
escola, duas horas antes do “beijaço”, a Praça já se preparava para o evento. Muitos
policiais esperavam o momento de agir, caso fosse preciso, vestidos com uma
indumentária própria para ocasiões de grande tensão e violência. Também muitos
ambulantes preparavam seus isopores com cervejas e refrigerantes. No momento do
beijo coletivo, estávamos no meio da confusão saudável, meu filho nos meus
ombros. Neste momento, uma moça, ao lado do namorado, deu-nos os parabéns por
trazer nosso filho para a manifestação, por transmitir-lhe os valores da
tolerância (convivência seria melhor) e da importância de aceitar o diferente. É
claro que a presença da polícia militar é melhor do que sua ausência, e que
receber elogios de um anônimo por sermos pais decentes nos orgulha. Por outro
lado, a necessidade de um aparato policial daquela monta é um sinal de que algo
vai mal em nossa sociedade, que ela ainda está doente e que o processo de cura
vai ser lento e doloroso, se cura houver, se a morte não chegar primeiro. O
elogio que nós recebemos, por sua vez, é a prova de que a exceção confirma a
regra.
Os trogloditas que xingaram e agrediram
fisicamente o casal que trocava carinhos na Praça São Salvador podem muito bem,
na infância, ter brincado no parque em que meu filho e o neto da avó machadiana
brincavam tempos atrás. Não é possível transigir com a barbárie, é preciso
estancar a hemorragia. E viva o beijaço!
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