Meu filho, às portas de completar seis anos
de vida, já demonstra inquietude com relação à passagem do tempo, o que lhe
espera num futuro ainda indefinido. É comum perguntar-me quantos anos terá
quando eu for “velhinho”, ou quando serei “velhinho”, e quanto anos eu terei
quando ELE for “velhinho”. Acho curioso que, já tão novo, questionamentos
existenciais façam parte de suas reflexões. Talvez tudo tenha começado com a
familiarização dos números, da contagem progressiva, da possibilidade de irmos
ao infinito. No caso da vida humana, infelizmente, trouxe-o de volta ao que
considero a realidade. Certa vez, perguntou-me quantos anos eu terei quando ele
tiver cem, e eu lhe respondi que, bem provavelmente, eu já terei morrido. Esta
resposta não o chocou, o que o chocou foi a continuação da explicação, o que
acontece quando chegamos ao fim da vida terrena. O que vem depois?, quis saber
o pequeno. “Viramos pó”, foi o que ouviu de um pai descrente, ateu convicto. Fui
insensível? Não sei. Como explicar que a vida é meio sem sentido mesmo, que
nascemos, vivemos e morremos e que devemos aproveitar enquanto estamos por aqui?
Este é o meu mito fundador.
A mãe tem uma explicar muito mais
interessante, condizente com a realidade fantástica que ainda queremos que as
crianças vivenciem, menos chocante, afinal, ainda têm tempo de sobra pra pensar
em questões existenciais do tipo “de onde viemos, para onde vamos”. Segundo ela,
o mito fundador é contado da seguinte maneira: nosso filho era um anjinho que
pairava nas nuvens, divertia-se com os outros anjinhos enquanto observava os
homens e as mulheres em seus passos apressados aqui embaixo. Anjinhos têm livre
arbítrio, portanto, dentre os milhões de potenciais pais e mães, escolhem dois
a seu bel prazer, que acabam se conhecendo, namorando, casando (nem sempre…) e
dando-lhe vida terrena. É engraçado quando nosso filho é contrariado, quando
dizemos não a um pedido de refrigerante ou de chocolate logo antes do jantar, e
diz que não devia ter nos escolhido como pais, e que não nos escolherá na
próxima vez que vier de visita ao mundo terreno.
À morte terrena, o anjinho transforma-se em
alma e volta para o plano superior, tendo nova oportunidade de voltar à terra, quem
sabe com o mesmo pai e a mesma mãe, que também haviam subido às nuvens após
suas mortes e voltado à terra também. O “namoro” dos pais e a colocação da
“sementinha” na barriga da mãe dão materialidade a algo definido anteriormente (ele
ainda não perguntou “como” a sementinha vai parar na barriga). Quando ele me
pergunta o que é alma, não sei responder, peço ajuda aos universitários, quer
dizer, à mãe. Sinceramente, este mito fundador não me incomoda, por enquanto. Tudo
se complica, porém, quando entra em cena a oposição “céu” e “inferno”, bondade
e maldade, anjos e demônios, bom comportamento e mau comportamento, ordem e
caos. Tudo se complica quando entra em cena o discurso religioso.
Defendi veementemente a liberdade de
expressão no episódio do massacre perpetrado por fundamentalistas islâmicos
contra jornalistas do semanário Charlie Hebdo, defesa do direito de rir dos
outros e de si mesmo, algo possível apenas em sociedades democráticas. Num
almoço de domingo, poucas semanas atrás, uma amiga, que poderia dizer é meu
ombudsman, está sempre desafiando minhas verdades, questionou-me sobre a
possível hipocrisia dos que defendem esta liberdade de expressão e, ao mesmo
tempo, defendem o respeito à diversidade cultural e transmitem este valor para
os filhos desde pequenos. Por que não, perguntou meu ombudsman, deixar as
crianças praticarem o bullying? Por que retardar em alguns anos o sarcasmo e a
ironia dirigida àqueles dos quais discordamos? Faz alguma diferença?
Num primeiro momento, depois de pensar um
pouco, respondi dizendo que o convívio com a diferença não significa aceitá-la
de bom grado, como de igual valor ao que acredito, e que faz parte da luta pelo
direito de afirmar a identidade piadas, ainda que grosseiras. O desconforto com
o diferente não significa, por outro lado, a sua aniquilação. Mas não fiquei
satisfeito com esta resposta, claro, porque não explicava a hipocrisia de que
ela falava, e passei a semana toda matutando com meus botões como sair
honrosamente da enrascada proposta pela amiga da onça. A oportunidade veio
pouco tempo depois, num aniversário de amigos em comum.
Triunfalmente, retomei o assunto e
justifiquei a “proteção” das crianças pelo fato de elas não saberem ainda
diferenciar um sarcasmo, uma ironia, e não terem noção das consequências de
seus atos nem instrumental conceitual adequado para defender-se de possíveis
ataques verbais. Adolescentes e adultos têm. Em todo caso, minha amiga, seguida
de minha esposa, se colocou favorável a algum tipo de freio moral, de censura
ao que pode ser dito e feito, e que não há nada de errado nesta proposta, afinal
de contas, vivemos cheios de regras sociais às quais devemos nos submeter sob
pena de prisão (matar, por exemplo). E que sem estas regras o que há é o caos. A
salvação pode estar na religião ou num contrato social. E é aqui que o ateu
precisa dar as caras novamente, apavorando o filho de seis anos.
O Velho Testamento, por exemplo, é um ótimo
exemplo de como o multiculturalismo esteve desde sempre fadado ao fracasso, que
o convívio com o diferente é perda de tempo, e que o melhor a fazer é submeter-se
ao autoritarismo divino como um bom filho obedece cegamente ao pai, dono da
verdade. Os dez mandamentos, na realidade, funcionam como cortina de fumaça
daquilo que realmente importa numa leitura minuciosa do texto “sagrado”. Condenar
o homicídio, a calúnia e o roubo são valores que devem ser prezados, A DESPEITO
da religião, que justifica, ainda nos escritos das tábuas da lei, a existência
de escravos e escravas, que não podem ser cobiçados por outrem, além de
homicídio em massa do “outro”. E há mais, muito mais. Vejamos.
A religião condena o ser humano à ignorância
porque a reflexão desafia a verdade divina imposta de cima para baixo. O
episódio envolvendo a maçã e a cobra representa a apologia da servidão, praticamente
equivalendo o ser humano aos animais irracionais, rebanho simbólico e físico. Está
escrito no primeiro livro do Pentateuco, Gênesis II-III:
E
da árvore do conhecimento, do bem e do mal, não comerás dela; porque no dia em
que comeres dela, morrerás. (…) E a serpente era astuta, mais do que qualquer
animal do campo que fez o Eterno Deus. (…) E disse a serpente à mulher: Não
morrereis! Porque sabe Deus que no dia em que comerdes dele (do fruto), abrir-vos-ão
os olhos e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal. (…) (Perguntou deus)
Acaso da árvore que te ordenei não comer dela, comeste? E disse o homem: a
mulher que deste comigo (Eva), ela deu-me da árvore e comi. (…) À mulher disse:
multiplicarei o teu sofrer e tua concepção; com dor, darás à luz, filhos; e
para teu marido será o teu desejo e ele dominará em ti. E ao homem disse: Porquanto
escutaste a voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo, não
comerás dela; maldita é a terra por tua causa: com fadiga comerás dela todos os
dias de tua vida.
Mal sabia o Eterno que, anos mais tarde, inventariam
a anestesia peridural.
E o que podemos dizer do sadismo presente na
provação imposta, embora aceita de bom grado, a Abraão, que, para provar seu
amor (?) ao Eterno, levou seu filho Isaac ao altar do sacrifício. Mil anos de
análise não seriam suficientes para recuperar pai e filho do bullying. Está lá,
em Gênesis XXII:
Deus experimentou a Abrão. E disse-lhe: Abrão! E disse: Eis-me aqui. E
disse: Toma, rogo, teu filho, teu único, a quem amas, a Isaac, e vai-te à terra
de Moriá, e oferece-o ali como holocausto, sobre um dos montes que te direi. (…)
E falou Isaac a Abrão, seu pai, e disse: Meu pai! E falou: Eis-me, meu filho. E
disse: Eis o fogo e a lenha, e onde está o cordeiro para o holocausto? E disse
Abrão: Deus proverá para si o cordeiro para o holocausto, meu filho. (…) E
estendeu Abrão sua mãe, e tomou a faca para imolar seu filho. E chamou-o um
anjo do Eterno, dos céus e disse: Abrão! Abrão! E disse: Eis-me aqui. E disse: Não
estendas tua mão ao mancebo e não lhe faças nada; pois, agora sei que, temente
a Deus és tu, e não negaste teu filho, teu único a mim. E levantou Abrão seus
filhos, e viu, e eis que um carneiro estava embaraçado numa árvore por seus
chifres; e foi Abrão, e tomou o carneiro e o ofereceu em holocausto em lugar de
seu filho.
A pedagogia da opressão aparece, em todos os
seus cinquenta tons de cinza, em Levítico XXVI. Diálogo com os filhos, não. Repressão,
dor, flagelo, morte, canibalismo.
E
se não me ouvirdes e não fizerdes todos estes preceitos; e se meus estatutos
rejeitardes, e se a vossa alma enfadar dos meus juízos, para não fazer todos os
meus preceitos, para violardes a minha aliança; também Eu farei isto a vós: porei
sobre vós o terror, a tísica, e a febre ardente que fazem desesperar e
atormentar a alma; e semeareis em vão vossa semente e a comerão vossos inimigos;
e se assenhorearão de vós aqueles que vos odeiam, e fugireis sem que ninguém
vos persiga. (…) E se ainda assim com isto não me ouvirdes, prosseguirei em
castigar-vos com sete calamidades por causa de vossos sete pecados. E quebrarei
a altivez de vossa força e vossa terra como o cobre. E acabar-se-á em vão vossa
força, e não dará vossa terra produto, e a árvore da terra não dará o seu fruto.
E se andardes comigo em teimosia, e não quiserdes ouvir-me, continuarei
trazendo sobre vós outras sete pragas, conforme os vossos pecados. (…)E trarei
sobre vós espada vingadora, em vingança do meu pacto, e sereis ajuntados dentro
das vossas cidades; e enviarei a peste entre vós, e sereis entregues a mão do
inimigo. Quando Eu vos quebrar o sustento do pão, dez mulheres cozerão o vosso
pão num só forno, e vos entregarão o vosso pão por peso; e comereis, mas não
ficareis satisfeitos. E se ainda com isto não me ouvirdes, e andardes contra
mim com teimosia; Eu andarei contra vós com furor de teimosia, e vos castigarei
também Eu com sete calamidades por causa de vossos pecados. E comereis a carne
de vossos filhos, e a carne de vossas filhas comereis.
A arte da guerra também está presente no
texto sacralizado, conforme verificado nas instruções divinas a Moisés quando
da tomada de cidades habitadas por infiéis. E o feitiço pode virar contra o
feiticeiro, se o filho teimar em desobedecer ao pai. Está lá, em Números XXXIII:
E
falou o Eterno a Moisés nas suas planícies de Moab, junto ao Jordão, na altura
de Jericó, dizendo: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: quando passardes o
Jordão para a terra de Canaã, desterrareis a todos os moradores da terra de
diante de vós, e destruireis todos os seus assoalhos de pedra, sagrados; e
todas as suas imagens de fundição exterminareis, e todos os seus lugares altos
sagrados, destruireis. E desterrareis os habitantes da terra e habitareis nela;
pois para vós dei a terra, para herdá-la. (…) E se não desterrardes os
moradores da terra de diante de vós, os que deles deixardes ficar, ser-vos-ão
como pregos nos vossos olhos, e como cercas de espinhos à vossa volta, e
angustiar-vos-ão na terra em que habitardes. Então acontecerá que farei
convosco, o que pensei fazer com eles.
Há poucos dias, os bárbaros homicidas do
Estado Islâmico destruíram milhares de manuscritos, documentos e livros raros
após invadirem a Biblioteca Pública de Mosul, no norte do Iraque. A estimativa
é de que pelo menos 8.000 exemplares tenham sido destruídos, muitos deles
registrados na lista de raridades da UNESCO. O diretor da biblioteca disse que
os militantes demoliram parte do edifício com explosivos. Também foram à
Biblioteca Sunita, à biblioteca do Mosteiro dos Frades Dominicanos, com 265
anos de idade, e à Biblioteca do Museu de Mosul, que continha manuscritos
datados de 5.000 a.C.
Qualquer semelhança não é mera coincidência. Extremismo? Não. Religião.
O que dizer, então, das mulheres? Meros
objetos, escravas disfarçadas, pedaços de carne a serem devorados ou
descartados, ao bel prazer dos seus senhores. Em Deuteronômio XXI lemos:
Quanto saíres à guerra contra os teus inimigos, e os entregar o Eterno, teu
Deus, em tuas mãos, e deles levares cativos, e vires entre os cativos uma
mulher formosa, e a desejares, e a tomares para ti por mulher, então a trarás
para dentro de tua casa, (…) e ficará em tua casa, e chorará a seu pai e a sua
mãe um mês, e depois estarás com ela, e desposá-la-ás, e será para ti, por
mulher. E se não a quiseres, a deixarás em liberdade; e não a venderás por
dinheiro; não te servirás dela, porque a afligiste.
Sorte do Eterno que, em sua época, não havia
Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente nem Varas da Infância e
Juventude, nem Estatuto da Criança e do Adolescente, caso contrário, estaria em
maus lençóis. Perderia a guarda dos filhos e ainda correria o risco de ir para
a cadeia. Isto devido ao primor de coação e terror psicológico infligido ao
rebanho humano já no final da narrativa, em Deuteronômio XXVIII. E viva a Lei
da Palmada!
Maldito o fruto de teu ventre, e o fruto da tua terra, as crias de teu
gado e os rebanhos de tuas ovelhas. (…) Enviará o Eterno, sobre ti, a maldição,
a turbação e a repreensão em tudo o que estenderes a tua mão e fizeres, até que
sejas destruído, e até que pereças rapidamente por causa da maldade de tuas
obras com que me deixaste. O Eterno te fará pegar a peste, até que te consuma
de sobre a terra à qual tu vais para herdá-la. Ferir-te-á o Eterno com a tísica,
e com a febre e com a quentura e com o ardor (…). O Eterno dará, com a pouca
chuva, da tua terra, pó e poeira; dos céus descerá sobre ti, até que sejas
destruído. (…). E o teu cadáver será por comida a todas as aves dos céus, e aos
animais da terra, e não haverá quem os enxote. Ferir-te-á o Eterno com a sarna
do Egito, e com hemorroidas, e com sarna úmida, e com sarna seca de que não te
poderás curar. Ferir-te-á o Eterno com loucura, e com cegueira, e com
entupimento do coração. (…) Mulher desposarás, e outro homem dormirá com ela. (…)
O teu boi será degolado perante teus olhos, e não comerás dele; teu asno será
roubado diante de ti, e não voltará a ti; o teu gado será dado aos teus
inimigos, e não haverá quem os salve. Teus filhos e tuas filhas serão dados a
outro povo, e teus olhos o verão, e desfalecerão por eles todo o dia, pois não
voltarão; e não haverá poder nas tuas mãos para fazer coisa alguma. O fruto de
tua terra e todo teu trabalho o comerá um povo que não conheceste; e serás, certamente,
oprimido e esmagado todos os dias. E te tornarás louco pela visão que teus
olhos hão de ver. Ferir-te-á o Eterno com sarna maligna nos joelhos e nas
pernas, de que não te poderás curar, desde a planta de teu pé até o alto da
cabeça. (…) Muita semente produzirá, e pouco recolherás, porque a consumirá o
gafanhoto. Vinhas plantarás e cultivarás, e vinho não beberás, e nem colherás
as uvas, porque as consumirá o bicho. Oliveiras terás em todo o teu território,
e com o azeite não te ungirás, porque as tuas oliveiras deixarão cair seu fruto.
Gerarás filhos e filhas, porém não serão para ti, porque irão em cativeiro. (…)
E virão sobre ti todas estas maldições, e perseguir-te-ão e alcançar-te-ão até
que sejas destruído; porque não ouviste a voz do Eterno, teu Deus, para
guardares seus preceitos e seus estatutos, que te ordenou.
Religião é o caos. A apologia à escravidão, ao
apedrejamento de adúlteros é o caos. Ela deixa a vida mais chata, entediante, proíbe
que homens se vistam de mulher e vice-versa, adeus Carnaval. Condena formas de
prazer que fujam do “papai e mamãe”, literal e simbolicamente, porque na visão
míope e dicotômica, preto no branco, da religião, não é à toa que o Eterno
desenhou homens e mulheres equipados com tomadas, uns, e interruptores, outros.
É o design inteligente.
É conhecida a estória do historiador marxista
“judeu não-judeu” Isaac Deutscher que, duvidando da existência de deus, resolveu
comer um sanduíche de presunto sobre o túmulo de um rabino em pleno Yom Kipur, o
Dia do Perdão, dia em que judeus crentes (ou não) jejuam para expiar seus
pecados. Deutscher realizava, na verdade, um experimento, testava a ira divina,
mas ela não veio, ele não foi fulminado por um raio. A partir daquele momento, ele
trocou Moisés e o Talmude por Marx e Trotsky. Ele não morreu, deus sim. E o
caos não veio.
Woody Allen, que cansa de ridicularizar a
religião em seus filmes, sobretudo aquela com que teve de lidar por toda a sua
vida, a judaica, é bastante simples ao explicar porque a ausência do pensamento
religioso não significa imoralidade, ou melhor, amoralidade. A fonte de uma
vida moral não tem de passar, inexoravelmente, pela experiência religiosa, algo
tão evidente e cristalino que só aqueles que se arrogam o direito de definir a
priori o que é a realidade, que têm preguiça de desafiar verdades dadas, que
são adeptos do pensamento dogmático e autoritário, teimam em não enxergar. Dirigem
no escuro, para brincar com o título de um dos seus filmes. Numa de suas
inúmeras entrevistas para o jornalista Eric Lax, reunidas ao longo de três
décadas e publicadas há alguns anos sob o título Conversas com Woody Allen, o
cineasta afirma:
Uma coisa interessante: li um artigo escrito por um padre a respeito do
filme Match Point – Ponto Final. Era muito bom, mas ele partia de uma hipótese
errada. A hipótese era assim: se, digamos, a vida não tem sentido, é caos, é
acaso, então pode-se tudo, e nada tem sentido, todo ato é tão bom quanto
qualquer outro. E isso imediatamente leva alguém com uma convicção religiosa à
seguinte conclusão: é, pode-se matar pessoas e se dar bem com isso, se é o que
se quer fazer. Mas é uma falsa conclusão. O que estou dizendo de fato – e não é
oculto, nem esotérico, é claro e simples como água – é que nós temos de aceitar
que o universo é sem deus, e a vida é sem sentido, muitas vezes uma experiência
brutal e terrível, sem esperança, e que as relações amorosas são muito, muito
difíceis, e que ainda precisamos encontrar um jeito não só de suportar, mas de
levar uma vida decente e moral. As pessoas já vão concluindo que estou dizendo
que qualquer coisa serve, mas na verdade estou fazendo a pergunta: dado o pior,
como podemos continuar, ou até mesmo por que deveríamos escolher continuar? (…)
De todo modo, os religiosos não querem admitir a realidade, que contradiz o
conto de fadas deles. E se o universo for sem deus (ri baixo) eles perdem o
emprego. Interrompe o fluxo de caixa. Ora, existe uma porção de gente que
escolhe levar a vida de um jeito completamente autocentrado, homicida. Pensam
assim: já que nada significa nada e eu posso me dar bem com assassinato, vou fazer
isso. Mas pode-se também fazer a escolha de que estamos vivos, e outras pessoas
estão vivas, e estamos juntos num bote salva-vidas e é preciso tentar e fazer o
bote ser o mais decente possível para você e para todo mundo. E me parece que
isso é muito mais moral, e até mesmo muito mais “cristão”.
Aqui, posso juntar os dois pontos principais
da conversa com minha amiga, a importância e os limites da liberdade de
expressão e a necessidade de “censura”, que eu prefiro chamar de regras
socialmente estabelecidas de convivência, em nome da civilização (palavras
minhas) em oposição ao caos. Uma visão equivocada do que seja o
multiculturalismo é responsável por uma série de atrocidades cometidas nos
quatro cantos do mundo. Nesta visão torta, o respeito à diferença é direito
inalienável, o que significa aceitar a tudo e a todos, acriticamente. Tudo tem
o seu valor, deve-se exercer o relativismo moral/cultural a todo custo, deve-se
exercer o ofício de antropólogo cem por cento do tempo. Estamos diante, novamente,
da chatice do politicamente correto.
A “falência do multiculturalismo”, como
afirma o filósofo Denis Lerrer Rosenfield em recente artigo n’O Globo, ao
comentar o ataque terrorista ao Charlie Hebdo, ocorre exatamente porque o
direito à diferença como mandamento primeiro do politicamente correto significa
que qualquer forma de existência cultural diferente do Ocidente ou qualquer
comportamento é de igual valor aos princípios e valores universais que orientam
as sociedades democráticas, tolerantes e pluralistas.
Por que esse silêncio atroz em relação às
mulheres, na verdade meninas, muçulmanas que são mutiladas sexualmente em
vários países africanos por motivos religiosos? Trata-se de um mero exercício
do “direito à diferença”? As diferenças culturais devem ser simplesmente
respeitadas? Por que não o terror enquanto forma de contestação “diferente” dos
valores do Ocidente?
O caos impera quando somos tolerantes com a
intolerância, essência democraticamente compartilhada pelas religiões. É o
talibã afegão, o decapitador sírio, iraquiano ou britânico filiado Estado
Islâmico, o assentado judeu ultraortodoxo da Cisjordânia ocupada, o evangélico
brasileiro que prega a cura de homossexuais, o católico que não pode ouvir
falar de células-tronco que lhe dá urticárias. “Ah, mas são exceção!”, vociferará
uma voz do rebanho. Não é verdade. O fundamentalismo é o exercício prático do
que está escrito, nada mais do que isso. A diferença entre “moderados” e
fundamentalistas não está no conteúdo, mas na forma. Religiões não são um
cardápio em que se pode escolher, à la carte, o que mais nos apetece. É tudo ou
nada. Não se pode condenar o homicídio, por um lado, e dar passe livre para o
genocídio de populações inteiras que, por acaso, habitam cidades
“indevidamente”.
Meu filho, fique tranquilo. Meu livro de
cabeceira não é o Velho Testamento, manual de instrução para pais autoritários
e violentos. Nem o Novo Testamento, remendo do primeiro. Nem o Alcorão. Nem
nenhum livro que fale de vozes ouvidas por esquizofrênicos. Tenho vergonha
alheia desta má literatura. Você deve me honrar se, e somente se eu honrar-te. Pense
com sua cabeça, não com a dos outros. Use esta herança judaica de que seu pai
se orgulha, a de questionar sempre, retirando da zona de conforto aqueles que
acreditam ser os porta-vozes da revelação divina. Não sucumba ao caos. Construa
o bote salva-vidas. Estabeleça, com seus semelhantes, relações morais baseadas
em valores construídos, não impostos por uma entidade que ninguém vê, que paira
fantasmagoricamente sobre nós. Seja feliz, a despeito das forças demoníacas da
religião. Aqui se faz, aqui se paga.
Durma bem, e sonhe com os anjinhos.
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