Um dos nossos programas familiares favoritos
é passear no Aterro do Flamengo aos domingos pela manhã, quando as pistas
destinadas ao trânsito infernal carioca durante a semana estão fechadas.
É possível, então, levar o filho e sua
bicicleta, sua bola de futebol, uma cesta de piquenique e sentar sob uma das
inúmeras árvores que compõem um dos mais belos cenários da cidade, tendo ao
fundo o Pão de Açúcar.
Não foi diferente no último domingo, quando
desfrutamos da companhia de amigos e seus filhos, um deles comemorando seis
anos de vida, cúmplice de brincadeiras e arranca-rabos com nosso Miguel, quase
seis anos também.
Miguel quis levar sua bicicleta, argumentamos
que haveria outras diversões, ela ficou em casa. Para sua decepção, a amiga e o
aniversariante estavam motorizados, ou melhor, “bicicletados”, a dele vermelha,
a dela rosa. A certa altura, Miguel pede que o acompanhe numas pedaladas, aboletado
na bicicleta rosa, eu argumentei que não havia necessidade, que ele já sabia
andar, inclusive sem rodinhas, embora aquela bicicleta ainda as tivesse. Ele
respondeu em seguida, revelando seu desconforto com a cor da bicicleta, rosa, cor
de menina.
Corri à frente dele e o perseguindo por
alguns minutos. Quando voltamos do passeio, expliquei-lhe que não havia esse negócio
de cor de menino e cor de menina. Na verdade, como todos nós sabemos, há, sim, cores
de meninos e cores de meninas, o que não há é uma definição extemporânea, natural,
essencial, desta diferença. Tal explicação ainda é profunda para meu filho. Quis-lhe
mostrar que não deve ter receio de associar-se àquela cor se ele assim o
desejar.
Acredito firmemente que a vergonha de meu
filho nada tem de preconceituoso, mas faz parte de uma visão de mundo ainda
dividida por verdades absolutas, branco e preto, homem e mulher, certo e errado,
ainda não há muito espaço para o questionamento das verdades, embora tentemos
incutir a semente da dúvida sempre que possível. Ser mulher não é um problema, nem
ser homem. A dificuldade, aqui, é afirmar o cinza, o que, sem dúvida, deve ser
feito.
A preocupação do menino no caso da bicicleta
é com sua associação ao sexo feminino, o mundo é feito de homens e mulheres. Para
os adultos a coisa muda de figura. Pais de colegas da escola do Miguel, considerada
“construtivista”, que valoriza, ao menos teoricamente, a autonomia do indivíduo
e a importância da convivência mais ou menos harmônica entre diferenças sociais,
políticas, culturais e de gênero, elaboram melhor esta oposição de gêneros. Ouvi,
pelo que me lembre, ao menos um deles radiografando os alunos colegas de seu
filho a partir de expressões corporais e gostos ou desgostos por tais ou quais
brinquedos.
A partir de determinados estereótipos ficou
decidido, portanto, que algumas destas crianças, nascidas com o aparelho
reprodutor masculino, estariam mais próximos do sexo feminino, resumidamente, apresentavam
já todas as características necessárias para a rotulação de “gay”, estigma, é
claro.
O problema do enraizamento de estereótipos e
estigmas deve ser discutido desde cedo com as crianças, sob pena de acontecer o
descrito por uma amiga de uma amiga: preocupada com o fato de o filho andar na
ponta dos pés, a mãe o levou a um renomado ortopedista, que afirmou
categoricamente, através, é claro, de argumentos científicos objetivos, que não
havia qualquer problema com o andar do pré-adolescente de onze anos.
O pré-adolescente, então, disse ao
ortopedista que o problema quem o tinha era sua mãe, preocupada com a reação
dos colegas de turma. Sua preocupação, então, era com possível “bullying” a ser
sofrido pelo filho, especificamente aquele que “acusa” alguém de ser
homossexual por seu jeito de andar, falar, suas expressões corporais e seu tom
de voz. O problema é subjetivo, de representação, diz respeito à cultura, à
forma como atribuímos significado, valor ou falta dele ao mundo, como dividimos
o mundo em certas categorias.
Como demonstrou claramente o ortopedista, o
problema não está no pé, mas na cabeça. O problema está na forma como a
sociedade constrói sua representação de família, por exemplo, a família
tradicional heterossexual, assumindo-se que a condição humana pressupõe sua
reprodução, dando brechas para afirmações do tipo “aparelho excretor não
reproduz”. É importante, aqui, deixar claro que opiniões individuais a respeito
de escolhas do parceiro ou de certa “cultura” (cultura LGBT) devem ser tratadas
como uma questão de “foro íntimo”, preconceito para uns, respeito à diferença
para outros, em nada influenciando a Lei, conforme decisão do Supremo Tribunal
Federal de 2011, que reconheceu a união homossexual e seus necessários
desdobramentos (pensão, herança, etc.). É importante destacar algumas falas dos
ministros:
Onde há sociedade, há o direito. Se a
sociedade evolui, o direito evolui. Os homoafetivos vieram aqui pleitear uma
equiparação, que fossem reconhecidos à luz da comunhão que têm e acima de tudo
porque querem erigir um projeto de vida. A Suprema Corte concederá aos
homoafetivos mais que um projeto de vida, um projeto de felicidade (Luiz Fux)
Aqueles que fazem a opção pela união
homoafetiva não podem ser desigualados da maioria. As escolhas pessoais livres
e legítimas são plurais na sociedade e assim terão de ser entendidas como
válidas. (…) O direito existe para a vida não é a vida que existe para o
direito. Contra todas as formas de preconceitos há a Constituição Federal (Cármen
Lúcia)
Estamos aqui diante de uma situação de
descompasso em que o Direito não foi capaz de acompanhar as profundas mudanças
sociais. Essas uniões sempre existiram e sempre existirão. O que muda é a forma
como as sociedades as enxergam e vão enxergar em cada parte do mundo. Houve uma
significativa mudança de paradigmas nas últimas duas décadas (Joaquim Barbosa)
Nos Estados Unidos, entretanto, as coisas
são um pouco diferentes. Lá, em treze estados não é permitida a união de
pessoas do mesmo sexo, com consequências negativas para a economia do país. Segundo
recente reportagem d’O Globo, grandes corporações querem que a Suprema Corte do
país derrube tais leis estaduais que proíbem (ou criminalizam?) o casamento
homossexual. Numa mensagem enviada à Justiça, centenas de bancos e outras
companhias, num total de 379, argumentam que os estados que ainda o proíbem
“dificultem os esforços dos empregadores para recrutar e reter a força de
trabalho mais talentosa possível nesses estados”. O documento tem um tom
“pragmático”, explicitando que “a carga imposta por leis estaduais
inconsistentes e discriminatórias de ter que administrar esquemas complicados
para explicar o tratamento diferenciado dos funcionários na mesma situação gera
confusão desnecessária, tensão e diminuição moral dos funcionários”. Em resumo,
homossexuais geram lucro, por favor, deixem-nos trabalhar, o que é um papel de
cartório permitindo que duas pessoas tenham relações sexuais consensuais no recesso
do lar? Pouco importa se eu te desprezo, se te acho inferior, se gostaria de te
matar, contanto que você mantenha meu estilo de vida extravagante, que minhas
ações na Bolsa de Valores mantenham o “viés de alta”.
Esta visão “pragmática”, que prefiro chamar
de hipócrita e estereotípica, faz parte do dia-a-dia da economia brasileira, das
estratégias que empresas elaboram para atrair este “nicho de mercado”
constituído da chamada comunidade LGBT. Num sítio da Internet voltado ao
marketing, há oito razões para “dar valor a este público e constituir motivos
para trabalhar com este nicho”. Algumas delas são:
1.A
população gay no Brasil ultrapassa 18 milhões.
“Não há como negar o potencial de um nicho
que possui tantos adeptos. São 18 milhões de pessoas que usufrui de serviços, consomem
e viajam diariamente. Só em nosso país”.
2.A
renda média dos homossexuais está acima de R$3.000,00 e 47% está na classe AB
“Os homossexuais configuram um cenário onde
há melhor escolaridade, maior interesse à cultura como livros, museus e cinemas
e também grande parte ocupa boas posições no mercado. Desta forma, o grupo
ocupa um espaço de pessoas críticas, exigentes e que possuem dinheiro para
investir e consumir”.
3.Casais
gays jantam fora dez vezes mais que os heterossexuais.
“O ramo alimentício é um dos mais atraentes
para homossexuais. Por ser um grupo mais animado e curioso, grupos de amigos e
casais adoram marcar encontros em restaurantes e provar diferentes tipos de
comida enquanto conversam”.
4.Como
menos de um quarto deste público não tem filhos, há mais dinheiro disponível
para gastar consigo.
“Muitos casais homossexuais adotam filhos ou,
no caso de lésbicas, realizam a inseminação artificial. No entanto, a maioria
dos casais opta por não terem filhos ou simplesmente demoram mais para tê-los. Assim,
os gastos são diminutos e há um maior investimento em imóveis, carros e viagens.
De acordo com a Associação Brasileira de Turismo para Gays, Lésbicas e
Simpatizantes (Abrat-GLS), o perfil movimenta R$ 150 bilhões por ano no Brasil.
Além disso, 78% dos gays têm cartão de crédito e gastam 30% mais que os héteros
em bens de consumo”.
5.A
Parada do Orgulho Gay LGBT em São Paulo une mais de 3 milhões de pessoas
“A Parada Gay de São Paulo é um dos eventos
que mais movimento a economia do país. São milhões de pessoas vindas de
diversos lugares do Brasil e do mundo. Aqui, elas se hospedam, comem, fazem
compras e conhecem as principais atrações da cidade. Ponto positivo para o
lucro e para a internacionalização da cidade”.
Antes de fazer alguns comentários a respeito
das dicas apresentadas acima, deve-se lembrar de que, segundo dados do Censo 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia de Estatística – IBGE, os casais
homossexuais brasileiros têm, proporcionalmente, renda mensal média maior que a
de casais heterossexuais. Quanto maior a renda mensal, maior a proporção de
casais homossexuais e menor a proporção de casais heterossexuais. Por exemplo: na
faixa de renda “mais de 20 salários”, homossexuais perfazem 1,4%; heterossexuais,
0,34%. E como eles gastam? Turismo é um caminho. Turistas gays que visitaram o
Rio de Janeiro durante o Carnaval de 2015 gastaram 112% a mais do que os
heterossexuais, segundo pesquisa realizada pela Coordenadoria Especial da
Diversidade Sexual com a Riotur. A pesquisa mostra que a despesa média diária
dos homossexuais que visitaram a cidade foi de R$ 420,46, contra R$ 198 gastos
por heterossexuais. O público LGBT injetou R$ 461 milhões no período, montante
equivalente a 30,75% do total arrecadado pelo município durante a folia momesca.
Expostos os fatos objetivos, devemos prestar
atenção em algumas expressões utilizadas pelos marqueteiros que revelam a
insuficiência de uma abordagem economicista para a sobrevivência física e moral
de indivíduos que, dentre outras características, estabelecem relacionamentos
homoafetivos. Revelam, sim, o quão estereotipado é o grupo geralmente
identificado pela sigla LGBT. Estereótipos podem ser positivos, podem ser
negativos, mas em ambos os casos reduzem a diversidade interna ao grupo. Em
primeiro lugar, gays são “adeptos” ao grupo, como os vegetarianos e, portanto, com
direito a sair dele, a adesão pode ter sido um erro ou fruto de curiosidade. Diferentemente,
heterossexuais não são vistos como adeptos, simplesmente nasceram assim, nada
de excentricidades. Em segundo lugar, gays são encarados como um “grupo animado
e curioso”, representação mais do que duvidosa, sem base na experiência
concreta do cotidiano. A vida dos homossexuais não é uma eterna Parada Gay, bem
como a dos heterossexuais não é um eterno Carnaval.
A cidadania dos gays brasileiros, pelo que
se depreende das dicas está vinculada e condicionada ao consumo. A Parada do
Orgulho Gay é um “ponto positivo para o lucro”. Por ocuparem “boa posição no
mercado”, consomem livros, filmes, gostam de bons restaurantes e têm cartão de
crédito. As perguntas que devemos fazer, entretanto, são as seguintes: o que
acontecerá se os gays deixarem de gastar dinheiro? Ou se deixarem de ganhar
dinheiro? O que fazer com os gays que não estão inseridos no mercado, que não
participam deste mundo cor de rosa de vernissages e restaurantes cinco estrelas,
como é representado o estilo de vida homossexual (há um estilo de vida
homossexual?)? Gays pobres ou remediados não merecem respeito? Podem ser mortos?
Ou apenas discriminados? Guetificados? São descartáveis? Não seria mais decente
respeitá-los pura e simplesmente por sua humanidade e não pelo eventual lucro
gerado por seu padrão de consumo? A
cidadania é um direito ou um bem?
Links relacionados:
http://www.ideiademarketing.com.br/2012/11/07/oito-razoes-para-valorizar-o-mercado-lgbt-lesbicas-gays-bissexuais-e-transgeneros/
http://www.redeangola.info/turismo-gay-impulsiona-receitas-do-rio-de-janeiro/
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/11/casais-gays-ganham-mais-que-casais-heterossexuais-mostra-ibge.html
http://oglobo.globo.com/economia/gigantes-americanas-pedem-suprema-corte-que-derrube-proibicao-ao-casamento-gay-nos-estados-15516534
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/05/maioria-dos-ministros-do-stf-reconhece-uniao-homossexual.html
Também disponível em:
http://www.geledes.org.br
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