Quem tem filho em idade escolar passa,
todos os anos, pelo mesmo tormento: com quem deixar os filhos quando a escola
resolver “enforcar” feriados nacionais e municipais, cancelando o dia letivo de
sexta-feira quando o feriado ocorre na quinta-feira, promulgando pequenas
férias fora de época quando o feriado ocorre numa terça-feira e as aulas são
retomadas apenas na quarta-feira, deliciando os alunos com quatro dias sem a
aporrinhação de deveres de matemática, ciências, português e, suprassumo,
história e geografia? Tal “enforcamento”, ainda que injustificável, produto
nacional de primeiríssima qualidade tal qual a jabuticaba, obriga os pais a
empreenderem uma engenharia familiar que envolve avós, tios, tias, primos e
quem mais puder doar um pouco de tempo para que a criança não seja abandonada
em casa e os pais, acusados de abandono de incapaz. Enforcar Tiradentes
metaforicamente duas vezes não é tão escandaloso, entretanto, quando o mesmo
duplo homicídio é dedicado às celebrações religiosas.
No Brasil, pelo menos a nível nacional, há cinco feriados com conotação
religiosa: Paixão de Cristo, Corpus Christi, Nossa Senhora Aparecida, Finados e
Natal. No Rio de Janeiro, celebra-se, ainda, o Dia de São Jorge, afinal, somos
um país que valoriza a diversidade religiosa, a liberdade religiosa, o
sincretismo religioso. Por sorte, os legisladores esqueceram ou não deram o
devido respeito aos demais santos, que completariam o calendário e
inviabilizariam a economia, uma vez que, para cada dia do ano, a um deles
corresponde. Digamos que, no caso dos cinco feriados nacionais misturados
a crenças religiosas, haja uma espécie de institucionalização, cristalização de
resquícios de um tempo em que Estado e religião andavam de mãos dadas, anterior
à Constituição de 1891 que secularizou o Estado e deslocou para o espaço
privado aquilo que o indivíduo pensa e fez segundo valores criados e
transmitidos a partir de uma narrativa sacralizada, baseada no supernatural e,
portanto, inquestionável. O Brasil, país laico no papel, ainda reverencia a
Virgem Maria, sua padroeira, travestida de Nossa Senhora Aparecida.
A coisa muda de figura quando o Poder
Judiciário passa a ser alvo de pressões de todo tipo, especialmente da chamada
bancada evangélica no Congresso Nacional, no sentido de submeter a análise de
questões relevantes para a sociedade ao crivo do poder atemporal da religião,
intolerante por natureza. Pressões estas que, até, acabam por revelar possíveis
distorções favoráveis à própria visão religiosa em futuros julgamentos por
parte do sabatinado. É o que verificamos na sabatina por que passou o
pretendente ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, o jurista Luiz
Edson Fachin.
Questionado por senadores a respeito do
aborto, um destes membro da bancada evangélica, Fachin respondeu que:
“Eu já tive a oportunidade de me
manifestar e responder de maneira clara e objetiva: defendo a vida em sua
dignidade e sou contra qualquer forma de interrupção que venha ocasionar um
atentado à vida, seja no início ou no fim dela”. (grifo meu)
“Quanto ao aborto, digo numa palavra que
sou contra. Sei que há discussões atinentes à saúde pública, sei que há
discussões importantes sobre circunstâncias que o próprio Código excepciona,
mas eu sou um defensor da vida, da dignidade da vida humana e estou dando minha
posição pessoal de cidadão, como cristão e humanista, de colocar a vida como um
valor que se põe num patamar de supremacia. Não desconheço que há questões
socioeconômicas envolvidas, que há mulheres de baixa renda que são vitimadas
por procedimentos clandestinos, mas isso, no meu modo de ver, está num
determinado patamar que, em relação ao aborto ou interrupção voluntária da
gravidez, os meus valores pessoais, obviamente, não secundariam”. (grifo meu)
“Do ponto de vista de princípios, a vida
é valor supremo. (…) De onde inicia a vida? (…) A vida começa do começo da
própria existência, independentemente da formação do ser humano. A rigor, a
concepção é o marco a partir do qual é preciso proteger a vida”.
Há alguns dias, um caso de estupro de
uma criança de dez anos, no vizinho Paraguai, causou comoção mundial. O
acusado, o padrasto, nega qualquer envolvimento. A mãe da criança denunciou o
abuso às autoridades e solicitou permissão para a realização do aborto, que só
é permitido no país em caso de riscos para a vida da pessoa grávida. Mas a
mulher não apenas teve seu pedido negado como foi presa, acusada de ser
cúmplice do agressor e de violar seu “dever maternal” de cuidar da filha, que
já está no quinto mês de gestação. Segundo a vice-diretora da Anistia
Internacional para as Américas, Guadalupe Marengo, “o impacto físico e
psicológico de forçar uma menina a continuar com uma gravidez indesejada é
equivalente à tortura. As autoridades paraguaias não podem sentar de braços
cruzados enquanto esta menina sobrevivente de estupro encara mais agonia e
tormento”. Mesmo com a pressão das organizações, o governo Paraguaio já
sinalizou que não pretende intervir em favor da criança. Em entrevista a um
jornal local, o ministro da Saúde, Antonio Barrios, afirmou que “não há
indícios de que a saúde da menina esteja em risco (…) não somos, a partir de
qualquer ponto de vista, a favor da interrupção da gravidez”. No Paraguai, o
aborto é proibido inclusive em casos de estupro, incesto e feto com má
formação.
Amedronta-me elucubrar sobre o
posicionamento do senhor Fachin neste caso paraguaio porque, pelo que se
depreende de seu depoimento na Comissão de Constituição e Justiça do Senado
Federal, ele se posicionaria contrariamente à criança (a grávida). Às favas com
o seu sofrimento inenarrável, insuportável, contanto que seja preservada a
“cidadania cristã”. Ocorre, no entanto, que todos nós, brasileiros, não podemos
ter adicionados à nossa condição cidadã outro qualificativo restritivo sob pena
de, eventualmente, sofrermos algum tipo de preconceito. Somos cidadãos
brasileiros e ponto final. Tampouco o julgador, no caso de um ministro do STF,
deve sucumbir à sua identidade religiosa e deixar-se influenciar por ela no
momento de decidir favorável ou contrariamente num caso qualquer. Pouco me
importa se ele é cristão ecumênico, como pouco deve importar a ele que eu seja
ateu. Que o debate seja filosófico, científico, secular, dessacralizado.
Sua condição de “cidadão cristão” também
determina o que pensa sobre o casamento entre pessoas de mesmo sexo e como se
posicionará no futuro.
“Do ponto de vista dos princípios
constitutivos da família, temos, com acento no artigo 226 e seguintes da
Constituição, a família como base do Estado, a família como base da sociedade. E
a Constituição abre as possibilidades para que haja uma compreensão do que ali
se entende por família, mas também estabelece seus limites. Se não estivermos
de acordo com a Constituição, o caminho é o debate legislativo”.
“Tenho para mim que determinadas
categorias foram mesmo pensadas para casais heterossexuais”.
“A minha posição é nesse sentido de
atribuir direitos civis. Não promover condutas, não explicitar condutas, não
eleger modelos a serem seguidos pelos jovens ou por quem quer que seja”.
“Eu sou favorável que haja lei e que na
lei, se dependesse eventualmente da minha manifestação, seria favorável à
atribuição de direitos civis. Vou usar uma expressão que pode ser um pouco
profana: que não se deve heterossexualizar a homossexualidade. São coisas
distintas, cada um tem a sua esfera. E em relação ao casamento, foi um
instituto que foi pensado e historicamente levado efeito para a
heterossexualidade”.
Seu posicionamento está de acordo com
decisões proferidas recentemente pelo STF com relação à atribuição de direitos
civis a casais homossexuais, que perseguem um “projeto de felicidade”, nas
palavras do ministro Luiz Fux. Se, por um lado, Fachin sai pela tangente quando
afirma que é função do poder legislativo discutir a definição de família, por
outro deixa claro que adota uma visão atemporal, porque religiosa, do que
considera a instituição familiar, ainda que uso o argumento da historicidade
para justificá-la. Ora, se a definição de uma categoria é construída
historicamente, nada impede que, no curso da História, o significado desta
categoria mude a partir das lutas simbólicas travadas pelos diversos grupos de
interesse componentes da sociedade. Se é verdade que o Judiciário não pode
ingerir-se nas atribuições do Legislativo, também o é a importância de um
posicionamento político de um ministro do STF como cidadão brasileiro no
sentido de defender direitos básicos, como acredito ser o direito de constituir
uma família. Seja ela como for, homem com homem, mulher com mulher e, até,
homem com mulher.
Estranha-me, também, a afirmação de que
não se deve “promover condutas, não explicitar condutas, não eleger modelos a
serem seguidos pelos jovens ou por quem quer que seja”. Quem está pleiteando a
promoção de condutas ou elegendo modelos a serem seguidos? É comum ouvirmos da
boca homofóbica a acusação de que a defesa dos direitos dos homossexuais é um
“lobby gay” e que o objetivo é espalhar o modelo como o “normal” a ser seguido.
Exemplo deste complexo de perseguição é o dito “kit gay”, que nada mais é do que
a afirmação de uma identidade até então marginalizada. Portanto, não se trata
de promover a homossexualidade, mas de combater a homofobia.
Como paralelo, lembro que o Dia da
Consciência Negra é uma afirmação de identidade (podemos discutir o que a negritude,
o que é ser negro, mas isso é tema de outro papo), e não uma negação de
existência aos não negros. Luta-se pelo reconhecimento do direito de existir,
não uma imposição de qualquer modelo a ser seguido. A soma não é zero, não se
trata de uma luta do “nós” contra o “eles”. Em momento algum os defensores da
causa LGBT se posicionam contrariamente à heterossexualidade, levam adiante uma
campanha reativa contra o preconceito exógeno, contra sua criminalização.
Sabemos que o objetivo da sabatina a que
foi submetido Luiz Edson Fachin, por mais que seja obrigatória a todo e
qualquer pretendente ao cargo de ministro do STF, passou longe do que realmente
interessa à sociedade. Senadores governistas e senadores da oposição
revezaram-se diante das câmeras de televisão, uns tentando constrangê-lo em
nome da moralidade pública (sua possível ligação com o PT) outros defendendo-o
como membro do governo, e não um representante do Estado de Direito. Para nós,
do lado de cá do palco, o que importa é o que foi dito entre a verborragia
insignificante dos representantes do povo, a forma como ele vai se portar
diante de temas controversos, como os aqui levantados.
Em momento algum Fachin tinha a
necessidade de afirmar-se enquanto “cristão humanista”, mas o fez diante da
pressão de políticos experimentados. Espero, apenas, que exerça sua honestidade
intelectual despida de preconceitos de qualquer ordem e que mantenha suas
preferências religiosas na esfera apropriada, a privada.
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