“Que legal!”, exclamou minha esposa lá da
sala. “Marcelo, vem ver o comercial d’O Boticário pro Dia dos Namorados!”.
Na
peça publicitária de meio minuto, aparecem quatro pessoas, dois homens e duas
mulheres, presenteando seus respectivos namorados e namoradas. O inusitado, para
muitos telespectadores, acontece quando a porta da casa de cada um dos
presenteados se abre, quando o segredo é revelado: dois dos casais são formados
por indivíduos do mesmo sexo, um feminino, outro masculino.
No dia seguinte, leio que a campanha de Dia
dos Namorados do Boticário virou alvo de protestos e ameaça de boicote à marca
nas redes sociais e até de denúncia ao Conselho Nacional de Autorregulação
Publicitária – Conar, que abriu um processo para julgar a propaganda após receber
mais de vinte reclamações de consumidores que consideraram a peça
“desrespeitosa à sociedade e à família”. Internautas registraram protestos no
Reclame Aqui, site de reclamações sobre atendimento na compra e venda de
produtos e serviços.
Um deles, segundo reportagem de O Globo, afirma
que "o Boticário perdeu a noção da realidade, empurrando essa propaganda
que desrespeita a família brasileira. Não tenho preconceito, mas acho que a
propaganda é inapropriada para a TV aberta. A partir de hoje, não compro mais
nem um só sabonete lá, e eu era cliente".
O lançamento do comercial seria uma defesa
da “diversidade do amor”, “além das convenções”.
O portal de notícias G1 procurou a marca de
perfumes, que emitiu a seguinte nota.
O Boticário esclarece que acredita na beleza
das relações, presente em toda sua comunicação. A proposta da campanha “Casais”,
que estreou na TV aberta no dia 24 de maio, é abordar, com respeito e
sensibilidade, a ressonância atual sobre as mais diferentes formas de amor –
independentemente de idade, raça, gênero, orientação sexual – representadas
pelo prazer em presentear a pessoa amada no Dia dos Namorados. O Boticário
reitera, ainda, que valoriza a tolerância e respeita a diversidade de escolhas
e pontos de vista.
Já diziam os antigos que a propaganda é a
alma do negócio, portanto, devemos tirar o chapéu para o departamento de
marketing da marca de perfumes que, em meros trinta segundos, conseguiu
mobilizar a sociedade brasileira para a discussão a respeito da diversidade
sexual e da tolerância com o diferente, “vendendo seu peixe” porque também vale
a máxima de que “falem mal, mas falem de mim”. A peça publicitária invadiu o
domínio das representações, do simbólico, da luta pela definição de fronteiras
entre o certo e o errado, da luta pela afirmação de identidades. E isto não tem
preço, ou melhor, tem o preço do perfume anunciado. Muita gente vai passar a
consumir os produtos da marca, muitos outros, como o reclamante acima, deixaram
de fazê-lo. No final das contas, o saldo será positivo, missão cumprida.
Por mais que a nota reitere o compromisso da
marca com a tolerância e o respeito à liberdade de escolhas, é inegável que
também está presente o pragmatismo que rege qualquer departamento de marketing,
que orienta suas peças publicitárias de acordo com nichos de mercado bem
definidos. Pesquisas apontam que casais gays têm renda média mensal superior à
dos casais heterossexuais, geralmente sem filhos e, portanto, com dinheiro
sobrando para o consumo de bens duráveis. O importante, numa economia de
mercado, é vender, seja qual for a embalagem do conteúdo. Uma amiga acha que a
razão prática não é suficiente para explicar a ousadia, argumentando que uma
possível homofobia dos executivos da empresa impediria a veiculação da peça. Tenho
cá minhas dúvidas.
Somente em sociedades democráticas e
seculares a liberdade de expressão é garantida e, por extensão e
inevitavelmente, o conflito faz parte do cotidiano. É por isso que sou contra a
censura aos ataques homofóbicos que a peça publicitária sofreu, bem como a
anunciada ameaça de boicote aos produtos da marca, embora meus inimigos
prefiram calar-me.
Defendo o direito deles de dizerem sandices,
sua liberdade de escancarar sua visão de mundo esquizofrênica, repugnante, preconceituosa,
rancorosa, cheia de fel, cheia de infelicidade. Acredito, por outro lado, que
na arena pública este tipo de posicionamento pré-histórico, contrário à
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu artigo 1º afirma que
“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados
de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade”, precisa ser desacreditado, ridicularizado, lançado no lixo da
História ou, na melhor das hipóteses, no recesso do lar, no âmbito privado, onde
questões relacionadas à definição do conceito família devem permanecer.
A sociedade brasileira tem coisas mais
importantes com que se preocupar, coisas mais importantes do que o famigerado
Estatuto da Família, do que determinar com quem devo estabelecer relacionamento
afetivo, como devo ser feliz.
A histeria bárbara recebeu o contra-ataque
do site de humor O Sensacionalista, que publicou a seguinte notícia (não tão) fictícia:
O advogado Carlos Cunha, casado com
Maristela Cunha e pai de do casal Davi e Raquel, ficou indignado com o
comercial do Boticário para o dia dos namorados onde são exibidos diversos
tipos de casais incluindo casais homoafetivos. Carlos acha que esse tipo de
propaganda pode influenciar na orientação sexual de seus filhos e publicou em
suas redes sociais um texto se posicionando contra esse tipo de arranjo
familiar, defendendo a ideia de que “só um homem e uma mulher são capazes de
constituir um casal aos olhos de Deus e da sociedade e que qualquer coisa
diferente disso é uma aberração”. Cunha diz que não é homofóbico e nem é
preconceituoso, apenas quer ter o direito de preservar a instituição família
dentro de sua casa e privar seus filhos do contato visual com o homossexualismo.
Revoltado com a afronta que o Boticário proporcionou
aos valores familiares cristãos, Carlos Cunha se recusou a entrar na loja e foi
visto em uma loja de perfumes importados no centro da cidade comprando presente
de dia dos namorados. Carlos comprou dois perfumes: um para sua mulher e outro
para sua amante.
É claro que nem todo homem heterossexual é
homofóbico e tem uma amante.
O ponto que merece atenção aqui, a meu ver, é
a hipocrisia de significativa parte da sociedade brasileira que prefere viver
sob a aparência de convenções sociais abrindo mão de um comportamento ético
para com o outro e consigo própria. Que teima em criminalizar a
homossexualidade, em torná-la pornográfica, como o consumidor que acha que o
comercial não pode ser veiculado na TV aberta ou, acrescentaria eu, em horário
nobre, no intervalo da novela das 20h. Que, mais do que ser a favor do que
acredita, só vê sentido em sua existência se a existência do diferente for
negada, se não física, simbolicamente. Marginalizada, invisível.
Deixemos os porcos chafurdarem na lama da
intolerância. Que o Judiciário nos ajude.
Também disponível em:
cartamaior.com.br
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