Numa cena de um de meus comediantes
favoritos, Jerry Seinfeld, seu amigo neurótico George se vê às voltas com a
necessidade de resgatar alguns livros deixados na casa de uma moça com quem
acabou de terminar um relacionamento. Jerry não vê problema algum, mas George
não gosta da ideia. Jerry, então, diz para o amigo esquecer os livros, perguntando-lhe
se realmente precisa deles. George diz que sim, que precisa dos livros, e Jerry
pergunta por que. George responde que os livros são seus e que, por isso, precisa
deles. E por que precisa deles?, insiste Seinfeld. George exclama simplesmente
“são livros!”. Seinfeld indaga, então: “Que obsessão é essa com os livros? As
pessoas os colocam em suas casas como se fossem troféus. Para que você precisa
deles depois de serem lidos?”. E ironiza, finalmente, “Sabe, o legal de ler
Moby Dick pela segunda vez é que Ahab e a baleia ficam amigos”.
Quando abro a porta de meu apartamento dou
de cara com uma estante cheia de livros, meus troféus. Ali estão meus favoritos
da literatura brasileira, João Ubaldo, Veríssimo, Rubem Fonseca, Nelson
Rodrigues, Cony, e também os estrangeiros, Saramago, Roth, Dostoievski, Tchekhov
e muitos outros. Também me orgulha uma pequena biblioteca de livros com a
temática judaica e outra com obras que fizeram e fazem parte de minha formação
antropológica. A reação de quem se depara com as prateleiras cheias de livros é
variada, há quem exclame maravilhado com os títulos ali dispostos, há quem
pergunte, à la Seinfeld, para que tanto livro, para que acumular poeira e
traças. No quarto de meu filho a galeria de troféus aumenta um pouco a cada mês,
somando-se ao folclore brasileiro e gibis da Turma da Mônica e Batman estórias
da porquinha Olivia em português e espanhol e clássicos da literatura
estrangeira, como The cat in the hat. A escola faz a sua parte, o troca-troca
de livros entre os colegas e a ida semanal à biblioteca garante que, pelo menos,
dois livros sejam lidos fora do horário de estudos formal, geralmente à hora de
deitar para dormir.
Damos importância ao livro e, sobretudo, à
leitura. Claro, para ler um livro é preciso, primeiro, saber ler. Cultivamos o
hábito da leitura, cultivamos o intelecto, a leitura como instrumento para a
autonomia, para a construção da própria trajetória de vida, para a compreensão
e interpretação do mundo que nos cerca a partir do nosso ponto de vista, e não
de terceiros, uma empobrecida leitura mastigada, enviesada e, muitas vezes, coalhada
de preconceitos e estereótipos. A capacidade de ler permite o acesso a mundos
até então desconhecidos, do Saci Pererê, do Lobo Mau, da Chapeuzinho Vermelho, da
Mula Sem Cabeça. Permite a construção de nossa identidade, daquilo que somos, ou
melhor, que estamos, porque aquilo que somos pode mudar sempre, é só querermos.
Nada mais emocionante do que ver seu filho, de repente, ler o letreiro de uma
loja, pela primeira vez. Um novo mundo se abre, um mundo de possibilidades
infinitas, mundos infinitos.
Para mim, o livro tem que ter cheiro, às
favas com minha alergia à poeira. Eu preciso manuseá-lo, tocá-lo, virar suas
páginas. O livro é parte constituinte de quem sou, de minha identidade, é
extensão de meu corpo, está impregnado de memória, da minha memória, da minha
história. Livro não é produto biodegradável, descartável, pós-moderno, do tipo
“lavou, está novo”. O livro estabelece ligações afetivas. Lembro-me de um
colega de faculdade comentando, certa vez, com certa excitação, que havia
encontrado, num sebo, determinado livro que a namorada procurava fazia não sei
quanto tempo. O tesouro seria dado como presente de aniversário. Poderia ser o
Harry Potter ou Cinquenta tons de cinza, boa literatura, má literatura, o
importante é ler...
As livrarias no Rio de Janeiro estão
desaparecendo, sobretudo os sebos, que teimam em comercializar objetos sujos de
história. Joaquim Ferreira dos Santos, em sua coluna n’O Globo do dia 1º de
junho, intitulada “Minhas livrarias: O Rio de Janeiro é uma cidade cerca de
livrarias mortas por todos os lados”, diz que a cidade é habitada hoje por um
“cemitério de livros que jamais serão lidos, de palavras que para sempre assim
jazerão, algumas estranhas, outras peremptoriamente compridas, mas lindas, todas
agora esquecidas sem qualquer olho que lhes bata em cima, sem qualquer língua
que as jogue de novo no meio da rua”. É a tal “civilização digital”. Se não
digital, do kindle e do IPhone, do ambiente asséptico, inodoro, impessoal de
cadeias livreiras como Cultura, Travessa ou Saraiva, padronizadas. Chegamos à
era da “mcdonaldização” do hábito de ler. Sem passado, sem futuro, um presente
contínuo.
Não bastasse o desprestígio do livro físico,
vivemos o “triunfo total da não-leitura”, conforme o editor de não-ficção e
literatura brasileira da Editora Record, Carlos Andreazza, que resolveu lançar
a campanha pela “maioridade intelectual”, que considera uma provocação à onda
dos livros de colorir. Para ele, o editor também é um educador e tem a
obrigação de atrair o leitor jovem-adulto, ampliando o público leitor como uma
resposta saudável a esta atração cultural que é “o livro de unir os pontinhos”,
como ironicamente o define Joaquim Ferreira dos Santos. Andreazza diz que, hoje,
somos obrigados a falar redundâncias bárbaras como “livro para ler”. Uma piada
de mau gosto porque livro pressupõe leitura.
No passado, tivemos um presidente que batia
no peito, orgulhosamente, bradando a quem quisesse ouvi-lo que nunca havia lido
um livro de cabo a rabo. No presente, temos um governo cujo lema é “Brasil: pátria
educadora”, embora as universidades públicas federais estejam à míngua, com
falta de material de consumo básico como giz e papel higiênico e lixo
acumulando-se pelos cantos por falta de pagamento dos profissionais da limpeza
dos campi. Sem falarmos no corte monumental que o Ministério da Educação sofreu
em seu orçamento para o ano de 2015 com o ajuste fiscal. Uma pátria já não se
faz com homens e livros.
Há não muito tempo, perguntávamos a quem não
entendia o que falávamos se gostaria que desenhássemos a explicação. Era uma
brincadeira, uma forma de infantilizar o interlocutor. Chegou o dia em que a
piada perdeu a graça, porque deixou de ser piada.
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