Quem mora nas imediações do Largo do Machado,
uma grande praça que divisa os bairros do Catete e Laranjeiras, na zona sul da
cidade do Rio de Janeiro, conhece ou, pelo menos, já ouvir falar na Rotisseria
Sírio-Libanesa, restaurante na Galeria Condor que diz vender a “melhor
comidinha árabe”. Seja de manhã, à tarde ou à noite, o movimento é intenso de
gente se deliciando com esfihas, quibes, arroz com lentilhas, berinjelas, abobrinhas
e pimentões recheados, coalhada seca, kaftas, além dos doces de amêndoa e damasco.
É uma fornada atrás da outra, a massa é leve e o recheio é saborosíssimo. A
fidelidade dos fregueses passa de geração em geração: meu filho adora a esfiha
de queijo (eu prefiro a de carne), acompanhado de um suco de caju extremamente
doce, mas gosto é gosto. Um conhecido, sacrílego, afirma categoricamente que
uma parente sua, em Alepo, na Síria, cozinha (ou cozinhava?) tudo aquilo mil
vezes melhor. Difícil imaginar sem salivar.
O Brasil acolheu muitos imigrantes vindos da
Ásia Menor nas duas primeiras décadas do século XX, grande parte fugindo das
tensões políticas no Império Turco Otomano, dentre eles, sírios, libaneses, gregos
e turcos. Como os imigrantes sírios e libaneses chegavam ao país com o
passaporte do Império Turco-Otomano, eram classificados como “turcos”. Por
causa da mesma língua nativa, da dedicação ao comércio popular, do padrão
endógeno de casamentos, da vida social voltada para dentro da colônia, era mais
natural ao restante da sociedade ignorar as diferenças entre os dois grupos e
simplesmente fundi-los nesta categoria maior, processo que os acadêmicos chamam
de “prototipicalização”. O mesmo aconteceu com aqueles judeus oriundos do
Império Russo, classificados de “russos”, ainda que fossem de nacionalidades
distintas (como poloneses ou romenos). Mesmo após a extinção dos impérios os
termos permaneceram como meio de identificar os comerciantes, muitas vezes
carregados de sentido negativo.
Os imigrantes sírios e libaneses descobriram,
ainda nos finais do século XIX, que a abolição da escravatura havia criado uma
expansão dos mercados sem um crescimento paralelo do sistema de distribuição de
bens. Assim, estes “turcos” desbravaram o interior brasileiro, carregando suas
mercadorias em mulas através do interior de São Paulo e Paraná. Vendiam a prazo,
eram prestamistas, os “turcos da prestação”. Com o tempo, e muito trabalho, se
estabeleceram nas cidades em pontos fixos de comércio. Os imigrantes judeus
seguiram seus passos. Filhos e netos destes imigrantes conseguiram, em boa
medida e para certo desgosto dos mais antigos que viram seus negócios
familiares sem perspectiva de continuidade, entrar para universidades e
formarem-se médicos, advogados e engenheiros. Piada judaica, mas que serviria
para outros grupos étnicos:
–
Parabéns, Sara. Soube que sua filha vai se casar. Quem é o sortudo?
–
Obrigada, querida. Chama-se Isaac e é médico.
–
Médico? Ouvi dizer que era engenheiro.
–
Não. O ex-marido dela é que era engenheiro.
–
Ué, esse não era advogado?
–
Não, meu bem. Esse foi o primeiro marido.
–
Pois eu a invejo, Sara: tantas alegrias de uma filha só!
O Árabe do Largo do Machado continua firme e
forte. Acho até que os donos atuais nada têm a ver com seus fundadores, muito
menos com raízes no Oriente Médio. Nem sei mesmo se os fundadores são oriundos
daquelas bandas. Seja como for, a tradicional Rotisseria acaba de ganhar um
forte concorrente. Instalado numa barraquinha na lateral da Igreja Matriz de
Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado, a poucos metros da Galeria Condor,
um indivíduo que fala algumas poucas palavras de português com forte sotaque
digno das piadas mais estereotipadas, vende esfihas, quibes e falafel (aquele
bolinho feito de grão de bico). As embalagens com oito unidades vendidas a dez
reais cada (cada salgado na Rotisseria sai a cinco reais) fazem sucesso e atrai
a curiosidade dos passantes.
Pergunto ao “turco” de onde ele vem, já
adivinhando a resposta: Síria. Está aqui há dois meses. Legal? Ilegal? Pouco
importa. Não sei se ele é o dono do negócio ou se trabalha para outro. Também
não sei se é cristão, xiita ou sunita, se é a favor do ditador Assad, se apoia
o Estado Islâmico ou se não se importa com nada destas coisas. Só sei que, sorrindo
para mim ao dizer há quanto tempo aportou no Rio de Janeiro, sabe-se lá como e
em que condições, se sozinho ou com família, exibindo seus dentes amarelados, senti
um arrepio percorrer todo o meu corpo, uma aceleração no batimento cardíaco e
um nó se formando em minha garganta. Pela primeira vez tive contato real com a
tragédia que se abateu sobre o povo sírio. Ele é a cara da guerra, sua
representação fidedigna, muito mais valiosa que qualquer análise política ou
militar dos doutores e das estatísticas que vomitam números em cima de números
da guerra asséptica vista pela televisão. Ele é a miséria humana.
Compramos uma embalagem de esfihas de
berinjela e outra de falafel. Uma delícia. A Rotisseria perdeu um freguês.
Também disponível em: https://espacoacademico.wordpress.com
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