Ah, a descoberta do corpo, seus prazeres... Dia
desses, depois de passados muitos minutos debaixo do chuveiro em tempos de
racionamento de água, resolvi pedir a meu filho, de quase sete anos, que
acelerasse o processo, passasse o sabonete naquelas partes mais recônditas do
corpo e o shampoo naquela cabeleira herdada da mãe, sorte a dele. Entrei no
banheiro sem fazer barulho, eis que me deparei com o rapazola brincando
distraidamente com seu futuro instrumento de trabalho, companheiro de aventuras
amorosas e sexuais. Parecia que estava gostando. Olhei em seus olhos e
perguntei se já havia acabado de se lavar. Ele disse que não, usando a frase de
costume, "mais um minuto" e começou a contar, bem lentamente, de um a
sessenta. Eu saí do banheiro e comentei com a mãe, sorrindo, o que eu havia
visto. Estamos vivenciando o crescimento de nosso filho, físico e psicológico. Sim,
psicológico porque não lhe dei um esbregue, não lhe disse que o que estava
fazendo era errado, um pecado, que era feio, agi naturalmente porque é algo
natural a descoberta do corpo. Nada de trauma e repressão.
Claro que, não totalmente livre de nossas
amarras sociais, lhe ensinamos que a manipulação de determinadas partes do
corpo devem ser feitas privadamente, sozinho ou acompanhado (essa parte ainda
não deixamos explícito, ele vai descobrir também no tempo adequado), pouco
importa, e que andar pelado pela casa também não é algo necessariamente
divertido, sobretudo com visitas em casa. Ele mesmo já pede pra fechar a porta
do banheiro quando vai aliviar os intestinos. O tabu do corpo é inescapável
nessa nossa sociedade impregnada de estigmas e estereótipos relacionados ao
corpo humano, a uma suposta oposição entre natureza e cultura, o animalesco do
sexo e o cultural do amor, o animalesco feminino e o cultural masculino, herdados
e transmitidos geração após geração, sobretudo pela religião. Pecado, inferno, paraíso,
virgindade, promiscuidade. Amigos nossos não tomam banho com suas filhas
pequenas, nós não damos importância a isso, às vezes entramos os três debaixo
do chuveiro e ninguém fica excitado. O filhote pergunta sobre os pelos pubianos
e sobre o sangue que sai às vezes da "pixirica" da mãe, que explica
sobre a concepção dos bebês e o que acontece com o corpo feminino quando esta
concepção não ocorre. Aulas grátis de biologia, que bom, porque, a depender do
pai, que quase zerou a prova no vestibular, deste mato não sai cachorro algum. Momentos
de intimidade, de felicidade.
A beleza do corpo humano, a feiura do corpo
humano. Diferenças entre o corpo feminino e o corpo masculino. Meu comediante
favorito, Jerry Seinfeld, brincou com o tema. Num episódio do seriado, ao
chamar a namorada para o café da manhã, se surpreende com ela completamente nua.
Seinfeld comenta, ironicamente, com o eterno companheiro George que a namorada
sequer usou um guardanapo. A diversão vai por água abaixo quando, sempre nua, a
namorada tem uma acesso de tosse. A expressão facial de Seinfeld denuncia sua
repulsa. Novamente com seu companheiro George, que não vê problema algum em
alguém tossir pelado, Jerry explica que "ao tossir, há milhares de
músculos invisíveis que entram em ação. É como assistir um homem gordo receber
uma bala de canhão no estômago em câmera lenta". Há uma "beleza boa",
pentear o cabelo, e uma "beleza ruim", agachar-se.
Quando a namorada tenta abrir uma jarra de
picles, revelando mais do que deveria, Seinfeld entrega os pontos e diz que não
aguenta mais, é demais para ele toda aquela nudez, ainda que feminina, e
resolve mostrar à namorada, na prática, a teoria da boa e má beleza. Aparece nu
na sala, enquanto ela, também nua, lê o jornal recostada no sofá. Ela o
questiona sobre o porquê dele não estar vestindo roupa e que aquela nudez não é
boa. Seinfeld sai desolado. Ambos concordam ser melhor usarem roupas, "Sim,
roupas, isso é normal", conclui Jerry. Mas ele, olhando fixamente a
namorada, a partir de então, só consegue vê-la penteando os cabelos, nua, é
claro, e ela só consegue vê-lo como um chimpanzé porque ele, ao dizer que
precisa cortar o cabelo, coça a cabeça imitando o gestual de nossos parentescos
símios. Nudez feminina é boa, quase sempre; nudez masculina é feia, quase
sempre. Elaine, outra personagem hilária da série, compara: "o corpo
feminino é uma obra de arte; o corpo masculino é utilitário, pra te levar pra cá
e pra lá, como um jipe". Há mulheres que preferem o pênis circuncidado, considerando-o
esteticamente mais agradável, e há mulheres que o preferem como vieram ao mundo.
Gosto não se discute.
A culpa, o pecado, a transgressão, a
perversão relacionados à nudez são construções culturais. Não são dados da
natureza. Ou melhor, não há nem mesmo natureza humana enquanto uma realidade
intrínseca, ela mesma é uma concepção cultural. Quem visitou a Galeria Uffizi, em
Florença, e teve a oportunidade de se maravilhar com o David, de Michelangelo, uma
escultura de mármore de mais de cinco metros de altura, de um realismo
anatômico indescritível, e compreende o contexto histórico e cultural em que a
obra foi concebida e esculpida, não consegue ver qualquer distúrbio mental ou
sexual do artista renascentista. A escultura, inclusive, por conta da natureza
do herói representado, simboliza a defesa dos direitos civis incorporados na
República de Florença. Não há nada de natural no David, de Michelangelo, uma
das mais importantes obras do Renascimento, período marcado pelo humanismo, racionalismo,
pela dignidade do homem frente aos poderes extraterrenos, sobretudo da Igreja
Católica, medieval. Tudo bem, o pênis da escultura é alvo de piadas, desproporcional
à grandeza do corpo, e não é circuncidado, ritual quase unânime entre os judeus,
apesar do intenso debate atual, mesmo entre médicos judeus, sobre sua eficácia
ou barbarismo, suposto resquício de práticas ancestrais baseadas em
superstições. Detalhes.
Pois bem. O berço do Renascimento foi
ultrajado. Nesta semana, o presidente do Irã, país que se intitula uma
república embora religião e política andem de mãos dadas (caminhamos no mesmo
sentido), tanto assim que o líder político é um clérigo xiita, em visita à
Itália, pediu, através de sua delegação, que estátuas de mulheres nuas fossem
cobertas, dentre as quais, uma Vênus Capitolina, estátua de uma mulher nua
datada do século 2º antes de Cristo. De acordo com reportagem da Folha de São
Paulo, citando o jornal italiano Il Messagero, a delegação do Irã também pediu
que a entrevista coletiva do clérigo e do presidente italiano não fosse
realizada diante da estátua equestre em bronze de Marco Aurélio, como havia
sido programado. O motivo seriam os genitais da escultura do cavalo. Políticos
de esquerda e direita se pronunciaram contra as exigências do mandatário
estrangeiro, considerando-a uma "decisão vergonhosa, mortificação da arte
da cultura como valores universais" e que "isso não é respeito, é
anulação das diferenças; é uma espécie de rendição". O arqueólogo Giuliano
Volpe, presidente do Conselho Superior para os Bens Culturais do Ministério da
Cultura da Itália, somou-se aos críticos ao afirmar que "não se pode
esconder a própria cultura, a própria religião ou a própria história".
Nunca imaginei que concordaria com ideias de
um representante da direita, mas ele está coberto de razão quando diz que a
cobertura (perdoem-me a redundância) das esculturas é uma rendição, uma
anulação das diferenças e não um pacto civilizado de convívio com o diferente, ainda
que este diferente lhe incomode. Ademais, até onde sei, é de bom tom respeitar
o anfitrião. Tomemos os próprios iranianos: quem de nós se atreveria a dar um
beijo de língua, ou apenas um inofensivo "selinho", na esposa ou
namorada na avenida mais movimentada de Teerã, sob os olhos dos guardas
revolucionários? Quais das digníssimas leitoras se atreveriam a andar pelas
ruas da capital iraniana sem o véu? Que mulher se atreveria a assumir o volante
nas ruas da Arábia Saudita? Quais dos digníssimos senhores ousaria tomar um
chope gelado nas ruas da capital saudita? Ou, para não me acusarem de
islamofobia, tente andar abraçado com seu amado ou amada pelas ruas do enclave
medieval de Meah Shearim, em Jerusalém, onde judeus ultraortodoxos, imaginem só,
chamam o próprio exército israelense de nazista (não pelos motivos usados por
críticos do sionismo), aceitando o Estado de Israel somente após a chegada do
messias. Neste último caso, a resposta sofri na própria pele, mais por
ignorância das leis locais do que por necessidade de ofender, pedradas voando
sobre nossas cabeças. No Quirguistão, país da Ásia Central, um britânico foi
preso após ter comparado um prato de comida local ao órgão sexual de cavalo e
pode ser condenado a até cinco anos de detenção pelo crime de ódio racial. Por
mais ridícula que seja a acusação, sed lex, dura lex. Quer andar agarrado com a
cara metade, vá ao Brasil, terra sem pecado, abaixo da linha do Equador.
A cobertura das esculturas representa, simbolicamente,
a destruição física que o Estado Islâmico leva adiante em sítios arqueológicos
consagrados como patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO, como o de
Palmira, na Síria. O impacto negativo na forma como se estabelece o
relacionamento entre diversas culturas, diversas formas de ver o mundo, é
semelhante. O presidente italiano deu um tapa na cara de todos aqueles que
defendem o respeito à diferença, o convívio (e não tolerância, cuja conotação é
negativa) com o "outro", alinhou-se ao que há de mais intolerante, retrógrado,
atrasado, preconceituoso, ignorante, anti-humano que existe. O politicamente
correto tem limites. Antes que me esqueça: a visita do presidente iraniano deve
render acordos comerciais com a Itália na ordem de € 17 bilhões.
Nunca antes a expressão "em Roma como
os romanos" foi tão vilipendiada.
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