“Papai, ‘odeio’ é uma palavra feia, não é?”.
“Sim, filho. É uma palavra muito forte”.
“Então eu odeio o carnaval”.
“Mas por que, meu filho?”
“Porque tem muito barulho e eu não consigo
achar os meus amigos (no bloco de rua)”.
Quando eu era pequeno, na longínqua década
de 1980, lembro que carnaval era sinônimo de desfile de escolas de samba na
passarela da Marquês de Sapucaí. Brincar o carnaval, como se diz, resumia-se
aos bailes dos clubes, a maior parte deles restritos a adultos, e à própria
passarela do samba. De lá para cá, as coisas mudaram. O espaço público foi
retomado pela população carioca a partir do início dos anos 2000, que passou a
ser invadido, durante o período momesco, por dezenas de blocos carnavalescos de
rua. Para termos uma ideia, em 2011 desfilaram pelas ruas da cidade, da zona
norte à zona sul, 476 blocos, número que alcançou, neste ano de 2016, inacreditáveis
505 agremiações. E há para todos os gostos e faixas etárias. Para os pequenos, por
exemplo, a diversão é garantida no “Cordão umbilical” e no “Largo do Machado, mas
não largo do suquinho”.
O carnaval de rua faz a economia local girar,
principalmente o segmento de bebidas alcoólicas, consumidas aos milhares de
litros desde cedo, antes do meio-dia (horário limite extraoficial que os
pinguços de plantão estabelecem para “iniciar os trabalhos”), afinal de contas,
em algum lugar do planeta, já é de tarde. Eu mesmo, admito, faço parte desde
grupo de beberrões diurnos. Também aproveitam para ganhar um dinheiro extra os
pipoqueiros, os vendedores daquela espuma em aerossol insuportável que leva ao
desespero a oftalmologista pediátrica do meu filho, o vendedor de algodão doce
e muitos outros ambulantes que oferecem de tudo a preços não tão convidativos, inflacionados
pela imensa demanda de foliões.
O carnaval também é a época do ano em que
transgredimos determinadas regras sociais que, antes ou depois, são punidas, minimamente,
com a marginalização social. Pelo segundo ano, saio pela porta da frente do meu
prédio vestido de bailarina, de cabeça erguida, com os pelos do peito à mostra.
Os porteiros não fazem troça, pelo menos não na minha frente, sabem que é parte
do ethos carnavalesco a inversão de papéis sociais, não me consideram um louco.
É curioso que seja mais comum homens se travestirem de mulher do que o
contrário. Minha esposa gosta de sair de Branca de Neve. A maioria dos blocos
toca tradicionais marchinhas de carnaval, cujas letras o público, em geral, já
sabe de cor e salteado. Dificilmente vê-se qualquer tipo de confusão, empurra-empurra,
há um clima de alegria.
E meu filho “odeia” o Carnaval. Eu o entendo.
A quantidade de foliões cresceu
exponencialmente, e muitos blocos de rua ficam superlotados porque passam por
ruas estreitas ou, simplesmente, porque o espaço em que ficam parados não
comporta a multidão que resolver brincar o carnaval ali. Muitas vezes não é
possível ouvir o som da banda, de tão longe que ela fica dos retardatários, transformado
num barulho incompreensível.
Se o barulho ficasse restrito ao “horário
comercial”, estendido, digamos, até às onze horas da noite, uma colher de chá, vá
lá. Mas a desordem é total. Entretido num dos meus sonhos, sou acordado às duas
horas da manhã com sons de bumbos e trompetes e a cantoria de dezenas de
pessoas que passavam na frente do meu prédio. Aparentemente, não foram
incomodados pela polícia. Este não foi um caso isolado, um amigo que mora
próximo também se espantou quando começou a ouvir sons de instrumentos musicais
próximo de meia-noite.
O que dizer da sujeira? As toneladas de lixo
que se acumulam pelas calçadas mostram a (des)consideração e o (des)respeito
que o cidadão carioca e também os turistas têm pela cidade. Ok, a quantidade de
caçambas de lixo e de lixeiras pode não ser suficiente, mas a quantidade de
dejetos de todo tipo, o rastro de imundície que os blocos de rua deixam é
tamanha que fica difícil acreditar que apenas o poder público tem
responsabilidade sobre o caos urbano rotineiro que se instala durante o
carnaval. O pior é o dia seguinte aos cortejos, mesmo após a passagem da ala
dos bravos garis da companhia de limpeza urbana, que fazem o possível para
entregar o espaço público mais ou menos inteiro para mais um dia de folia, quando
os moradores do entorno sentem aquele odor nauseabundo de chorume misturado com
restos de cerveja, urina e outros líquidos indecifráveis, odor este
potencializado em dias de sol forte. Pior ainda para as crianças do meu prédio
que, se quiserem jogar bola, andar de bicicleta ou skate na praça em frente, têm
de colocar capacete, joelheiras e tornozeleiras para evitar que as dezenas de
cacos de vidro carinhosamente deixados no dia, noite e madrugada anteriores não
lhes cause cortes mais ou menos profundos. Alalaô!!!
Na sexta-feira anterior ao carnaval, ao sair
do trabalho, no centro da cidade, passei por vários prédios protegidos por
tapumes de madeira ou metal. A princípio, imaginei que fossem obras, mas, logo
em seguida, lembrei que, por ali, passariam diversos blocos de carnaval. Os
condomínios estavam, isso sim, protegendo-se dos foliões por medo de danos ao
patrimônio público e privado. Em lugares civilizados, este tipo de proteção
física faz sentido quando a cidade se prepara para eventos climáticos, como
tufões e maremotos. Na cidade maravilhosa, a preparação não é contra a fúria da
natureza e sim contra os animais humanos mesmo. Pela cidade, canteiros de
plantas são cercados para evitar a destruição por parte dos “mais exaltados”, na
praça em frente ao meu prédio a fonte de água centenária também teve de ser
cercada por estruturas de ferro. Nossos bárbaros são distintos daqueles
enfrentados pelos romanos, os nossos vêm do interior de nossas fronteiras, são
habitantes da cidade, são nossos vizinhos de porta que, aparentemente, não se
incomodam em viver no meio do lixo, afinal, a rua não é de ninguém.
O professor Micael Herschmann, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, escreveu um interessante artigo em que
analisa o crescimento do carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro no início
do século XXI. Ele cita, em determinado momento, a presidente da Sebastiana, a
Associação Independente dos Blocos da Zona Sul, Centro e Santa Teresa, Rita
Fernandes, que credita, dentre os fatores para o boom sem precedentes do
carnaval de rua o aumento da autoestima do carioca que, na visão do professor, é
mais consequência do que causa da “retomada dos cortejos de rua”.
Fico me perguntando que carioca em sã
consciência se orgulha do chiqueiro em que parte da cidade se transforma em
apenas quatro dias, como que arrasada por um furacão. Nos estertores do
carnaval, um grupo fazia um churrasco improvisado dentro do parquinho infantil
localizado na praça em frente de casa, debaixo do nariz da guarda municipal e
de fiscais da gloriosa Secretaria Especial de Ordem Pública. Casais de jovens
sentavam-se na mureta do parquinho, já com vários tijolos destruídos, bebendo
cerveja em garrafas delicadamente descartadas sobre as plantas que circundam o
espaço.
Vai além da minha compreensão o
comportamento destes bárbaros modernos que, apesar de habitarem a cidade, insistem
em maltratá-la, em envergonhá-la. O carnaval não pode servir de salvo-conduto
para tamanha afronta à cidadania. Mas quem se importa, não é mesmo? As
Olimpíadas vêm aí. Pão e circo, pra variar.
Referências bibliográficas
HERSCHMANN, Micael. Apontamentos sobre o crescimento do Carnaval de rua
no Rio de Janeiro no início do século 21. Intercom, Rev. Bras. Ciênc. Comun., São
Paulo, v. 36, n. 2, p. 267-289,Dec. 2013.
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