Síndrme de Vampeta



No final de 2015, o presidente da Funarte, Francisco Bosco, concedeu entrevista ao jornal O Globo em que expôs a grave crise financeira vivida pela instituição responsável, no âmbito do governo federal, pela elaboração e execução de políticas públicas de fomento às artes no Brasil e no exterior.

Dentre outras péssimas notícias, anunciou que não haveria recursos para o pagamento de três tradicionais editais lançados em 2015, o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz e o Prêmio Funarte Carequinha de Estímulo ao Circo, passivo empurrado para o ano de 2016 como “restos a pagar”. Dos R$ 50 milhões necessários ao pagamento dos dois últimos meses de 2015 para as atividades das áreas “meio” (manutenção de equipamentos culturais, pagamento de funcionários e terceirizados) e “fim” (editais, prêmios, oficinas de capacitação), a Funarte recebeu autorização para usar apenas R$ 11 milhões, obrigando a gestão a fazer uma verdadeira “escolha de Sofia”, afinal, como o próprio Bosco colocou, “na crise, não há justiça”.

Assim, conforme comunicado no site da Funarte, foi estabelecida uma ordem prioridades de desembolso à medida que recursos entrem nos cofres: 1) manutenção (funcionários da limpeza, vigilância); 2) terceirizados; 3) atividades concluídas; 4) atividades em andamento; 5) prêmios. A atual gestão comprometeu-se, ainda segundo o comunicado, em priorizar o pagamento dos editais contingenciados tão logo a Lei Orçamentária Anual de 2016 e os valores do Fundo Nacional de Cultura sejam estabelecidos e o Ministério da Cultura inicie os repasses financeiros para suas entidades vinculadas, prazos estes que “fogem à governança da Funarte”.

O exemplo do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna é emblemático da dificuldade de fazer política pública sem planejamento orçamentário plurianual, com reflexos negativos no alcance das diretrizes institucionais, metas do Plano Nacional de Cultura e respectivos Planos Setoriais. Lançado em 2006 como forma de perenizar a atuação do Estado no campo da produção, manutenção e circulação da dança, o Klauss Vianna vem premiando, ao longo dos últimos 10 anos, projetos de circulação nacional de espetáculos, atividades artísticas de artistas consolidados e atividades artísticas de novos talentos. O investimento direto seria uma resposta à dependência de modelos de financiamento baseados em mecanismos de renúncia fiscal que não resolvem o problema da exclusão de grande parte das manifestações coreográficas do acesso às fontes de financiamento e oportunidades de difusão e preservação. No entanto, conforme o gráfico abaixo, o orçamento tem variado bastante desde a primeira edição:

Gráfico 1 – Premiação, por ano.
(em milhões de reais)


Ao longo dos anos, a fonte de financiamento não foi a mesma. Os recursos vieram da Petrobras (2006, 2007, 2008 e 2012), de investimento orçamentário (2010 a 2014), do Fundo Nacional de Cultura (2009 e 2015) e de emendas parlamentares. Verifica-se, assim, que o fomento depende em larga medida de financiamento via lei de renúncia fiscal e da possibilidade de suplementação orçamentária através de emendas negociadas no congresso nacional, onde critérios técnicos dão lugar a negociações políticas que passam, muitas vezes, ao largo do interesse público dos gestores da instituição.

A penúria orçamentária do Klauss Vianna contrasta com a abundância de recursos incentivados para a área da dança, que passaram de R$ 70 milhões em 2015, mais de 15 vezes superior ao montante distribuído pela principal ação de fomento à dança gerida pela Funarte. Andou-se sem sair do lugar. Ou melhor, para trás.

No comunicado divulgado pela Funarte, ressalta-se o aspecto legal da decisão de privilegiar determinadas ações em detrimento de outras, sendo os prêmios lançados em 2015 a última prioridade da lista. Isto porque, diferentemente, por exemplo, de atividades já realizadas, como oficinas de capacitação, a Portaria 29 do MinC determina que os selecionados de um prêmio se encontram em estado de “expectativa de direito”, isto é, “para a legislação, a atividade de um prêmio só começa quando o contemplado efetivamente recebe o dinheiro, caracterizando assim uma diferença em relação às ações já realizadas ou em andamento”.

O quadro é ainda mais desolador para os vencedores do Klauss Vianna porque o passivo se estende à edição de 2014.

As dificuldades financeiras não são exclusividade de instituições federais. No relatório de gestão relativo ao período 2011-2014, a Fundação de Cultura do Estado da Bahia – FUNCEB conclui que, ainda hoje, parte da sociedade e dos gestores públicos percebe a cultura e as artes como ludicidade, entretenimento ou amadorismo, “abstraindo o fato de que, por trás destes serviços prestados à sociedade, há um complexo campo econômico, gerador de trabalho e renda para um conjunto de profissionais que, como todos os outros, têm contas a pagar e querem conduzir suas vidas com dignidade” (p.74). Se, por um lado, há o reconhecimento da importância de um modelo de fomento democrático, por outro, este modelo se torna frágil e ameaçado se não acompanhado pelo compromisso real de cumprimento das obrigações por parte do poder público. No início de sua gestão, o então secretário Albino Rubim decidiu suspender temporariamente os editais para tentar regularizar a situação do pagamento dos premiados.

O desrespeito involuntário (claro, nenhum gestor público bate no peito e se orgulha deste constrangimento) ao profissional das artes, a sensação nada agradável de ter tido o tapete puxado, “devo, não nego; pago quando puder”, é resumida na fala da coreógrafa Suely Machado, integrante do grupo de dança Primeiro Ato, que ainda não recebeu o prêmio do edital Klauss Vianna de 2014, no valor de R$ 100 mil, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo do dia 16 de dezembro de 2015: “se a Funarte lança um edital sem recursos (para cumprir o pagamento), ela está desrespeitando o artista, está considerando ele como um não-artista”.

E o que isso tudo tem a ver com futebol?

No início dos anos 2000, o Flamengo contratou um jogador chamado Vampeta. Era um fanfarrão. Ganhava muito e jogava pouco, suas atuações eram medíocres. Naquela época, o Flamengo passava por uma profunda crise financeira e, ao tentar justificar-se e responder aos críticos, saiu-se com uma frase que ficou marcada na história do futebol brasileiro: “Eles fingem que me pagam e eu finjo que jogo”. O crítico e curador Kil Abreu reagiu ao comunicado da Funarte no estilo Vampeta, também em entrevista à Folha de São Paulo no mesmo dia 16 de dezembro de 2015. “É preciso fazer de conta que a Funarte ainda existe. Para que depois, quem sabe, venha a existir de fato”.

Sou da opinião de que nenhum edital deveria ser lançado em 2016 enquanto este enorme passivo econômico e moral não for sanado. Talvez o custo político desta escolha seja muito alto, ou não. Será que, ao zerar este passivo, a Funarte não estaria demonstrando responsabilidade com o dinheiro público, respeito aos que nela depositaram sua confiança, que perderam horas e reais elaborando projetos mais ou menos complexos, planejando suas montagens e circulações, negociando pautas, levantando orçamentos? Credibilidade não tem preço.

Prestar contas com o passado olhando para o futuro. Está em curso um intenso processo de discussão do papel da Funarte no âmbito da construção de políticas públicas para as artes, incorporado na futura Política Nacional das Artes. Dentre os temas a serem priorizados e transformados em projetos transversais estruturantes estão a Rede das Artes (formação de uma rede que possibilite a circulação, difusão e intercâmbio da produção artística de cada linguagem, por meio de uma plataforma digital cujo objetivo é funcionar como espaço de agenciamentos das linguagens artísticas, especialmente voltada para circulação), os Marcos Legais para as Artes (projetos de revisão da legislação no sentido de liberar gargalos, desburocratizar o trabalho dos gestores públicos, regulamentar leis que regem a profissão dos artistas) e Sistema Federativo de Fomento às Artes (articulação com secretários estaduais de cultura, gestores de fundos e outros atores a fim de definir as condições para uma nova forma de relação entre os entes federados, no que diz respeito ao fomento) e o Programa de Apoio a Atividades Continuadas.

É uma ótima oportunidade para provar que, tal qual Fênix, esta quarentona renascerá das cinzas.




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