Em decisão histórica, o Tribunal de Contas
da União, acionado pelo Ministério Público quanto a indícios de irregularidades
no apoio concedido pelo Ministério da Cultura à edição de 2011 do Rock in Rio, constatou
que a autorização de captação de recursos para o evento não considerou
pareceres técnicos contrários à destinação de verbas públicas a projeto com
potencial lucrativo sem a exigência de contrapartida compatível. Tais pareceres
já haviam alertado para o fato de que um dos objetivos da lei federal de
incentivo à cultura, a Lei Rouanet, é apoiar projetos com maior dificuldade
para conseguir financiamentos.
O relator do processo comentou
que “em uma área como a cultura, na qual os recursos disponíveis são mais
escassos, o apoio a um festival lucrativo como o Rock in Rio indica uma
inversão de prioridades, com um possível desvirtuamento do sentido da Lei de
Incentivo à Cultura” e que “a análise de solicitações de incentivos fiscais a
projetos que se apresentem lucrativos e autossustentáveis deve ser restritiva”.
O TCU determinou à Secretaria Executiva do MinC que não autorize a captação de
recursos a projetos que apresentem “forte potencial lucrativo ou capacidade de
atrair suficientes investimentos privados”.
A decisão do TCU ocorre em meio à polêmica
envolvendo a cantora baiana Claudia Leitte, que recebeu permissão para captar R$
365 mil pela Lei Rouanet para a publicação de um livro autopromocional, com
fotografias e “entrevista exclusiva” a ser distribuída gratuitamente. Diante da
péssima repercussão de uso do dinheiro público por um artista “consagrado” (no
sentido de ser bem sucedido no que faz, sem que haja, aqui, julgamento da
qualidade da produção artística) que, a princípio, poderia angariar recursos
privados sem o auxílio do poder público, o projeto foi “abortado”. A assessoria
de imprensa da cantora emitiu o seguinte comunicado:
“Em 2014, um projeto previa um livro
institucional sobre Claudia Leitte – ao contrário do que noticiado pela
imprensa, não tratava-se (sic) de uma biografia. Também pela imprensa, a CIEL –
empresa que gere a carreira da artista – soube que o projeto, em total
conformidade com a Lei Rouanet, foi aprovado. Deste modo, a CIEL poderia captar
recursos junto à iniciativa privada. No entanto, a CIEL repudia notícias
maldosas que sugerem que Claudia Leitte se beneficia de incentivos fiscais e
informa ainda que o mesmo já estava abortado – sendo assim, como o recurso não
foi captado, será arquivado no MinC (Ministério da Cultura).”
O que seria um “livro institucional” sobre a
Claudia Leitte? Uma biografia não seria o “livro institucional” de um indivíduo?
Também não acho que sejam maldosas notícias que afirmam que a cantora se
beneficiou (ou se beneficiaria) de incentivos fiscais, mesmo porque o próprio
comunicado informa que o projeto estava em “total conformidade” com a lei de
incentivo fiscal à cultura. A questão, a meu ver, é exatamente a conformidade
deste tipo de projeto com a Lei Rouanet.
Segundo declarações do ministro Juca
Ferreira, em entrevista ao jornal O Globo, o fomento à cultura através de
recursos incentivados não se baseia no critério da necessidade de política
pública de cultura, beneficiando-se sempre os mesmos, os tais “consagrados”, contra
os quais o ministro nada tem porque “fazem arte de qualidade (este ponto é
questionável, digo eu) e é sinal que são bem aceitos, mas a distribuição tem
que respeitar o interesse público”. Daí o problema não ser as empresas que se
utilizam do mecanismo, porque cumprem com exigências meramente técnicas e
burocráticas, mas o próprio escopo da lei que dá margem a distorções que apenas
reproduzem a desigualdade estrutural de acesso a recursos públicos destinados
ao fomento da produção e fruição cultural. O mercado investe no que quer, apenas
o Estado não pode ser conivente com tais escolhas porque contrárias ao
interesse público.
Ainda com relação ao episódio envolvendo a
versão loura de Ivete Sangalo, Juca Ferreira informou, à época, que vetaria o
projeto, citando seu poder ad referendum, embora reconheça que não pode usá-lo
sempre, somente em casos excepcionais, ainda que a captação fosse realizada por
produtora apta.
Não importa, Claudia Leitte tem condições de
captar, é uma das artistas mais bem-sucedidas economicamente. Enquadra-se
perfeitamente naquilo que o Tribunal de Contas da União recomenda. Já está
sendo preparado o ad referendum pela área jurídica.
Em editorial intitulado “Continuam as
incompreensões com a Lei Rouanet”, O Globo faz coro aos críticos da decisão do
TCU ao afirmar que “seria desastroso se a administração dos recursos para a
produção cultural contaminada por interesses partidários e de grupos”, acrescentando,
ainda, que é preciso acompanhar o desdobramento da conclusão do Tribunal de
Contas da União porque, caso a jurisprudência for usada “para municiar mais um
ataque à Lei Rouanet, voltará o risco de empresas que hoje abatem do pagamento
de imposto o apoio a produções artísticas decidirem simplesmente deixar o
dinheiro com o Erário, caso não possam escolher qual projeto apoiar”.
O Globo coloca, no mesmo saco de gatos, gestores
corruptos, o aparelhamento político-ideológico do Estado e gestores
comprometidos com a elaboração de políticas públicas inclusivas e democráticas
amplamente debatidas com a sociedade civil. Utiliza-se da velha oposição entre
Estado e mercado. Em nenhum momento a discussão em torno da revisão da lei de
incentivo fiscal à cultura aventou a possibilidade de “dirigismo estatal” na
definição de quais projetos podem ou devem ser apoiados, apenas se
estabeleceram critérios que contemplem a descentralização regional e
diversidade das manifestações e linguagens artísticas para a aprovação ou não
de projetos que pretendem se valer de recursos públicos, repito, recursos
públicos. A iniciativa privada investe se quiser. O financiamento privado com
dinheiro privado, por outro lado, permanece intocado.
A Lei Rouanet, do jeito como está, é
perversa. Ela representa, ainda segundo Juca Ferreira, 80% do que o governo
federal aplica em fomento à cultura, obrigando o próprio Estado a lutar, no
mercado, por recursos públicos. Alguns números comparativos referentes ao ano
de 2015 entre o investimento direto através de recursos orçamentários e o
investimento através da renúncia fiscal explicitam o estado de penúria em que
se encontram instituições vinculadas ao próprio Ministério da Cultura, como a
Funarte, responsável por elaborar e executar políticas públicas para as artes. Tomarei
como fonte de análise, especificamente, os editais de fomento ao teatro, à
dança e ao circo, instituídos em 2006, como forma de perenizar a atuação do
Estado no campo da produção, manutenção e circulação das artes cênicas no país.
Não é choro de perdedor, ou melhor, o perdedor chora com razão.
Praticamente metade dos projetos das três
linguagens recebeu alguma captação de recursos no ano de 2015, ao passo que os
editais de fomento da Funarte não conseguiram ultrapassar a barreira dos 12% no
caso do circo e, constrangedoramente, contemplaram apenas 3,5% dos projetos
inscritos no Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz. E isso não se deve à falta
de qualidade dos projetos julgados pelas comissões de seleção, mas, conforme
observamos no gráfico 2, ao ínfimo recurso orçamentário destinado a ações que
deveriam ser o carro chefe da política institucional de fomento às artes
cênicas.
É possível fazer política pública para o
teatro, abrangendo todo o território nacional, com um orçamento equivalente a 1,5%
do captado pela Lei Rouanet? É possível depender de suplementação orçamentária
através de emendas parlamentares? É possível depender de patrocínio de empresas
estatais via renúncia fiscal em momentos de crise política e econômica? É
possível estabelecer planos plurianuais, planejar a política pública de médio e
longo prazo sem garantias de que esta política pública está institucionalizada,
cristalizada, é uma política de Estado que independe da vontade ou falta de
vontade do governo da vez? É moralmente defensável o financiamento privado da
cultura com dinheiro público à revelia de diretrizes estabelecidas pelo próprio
MinC em diálogo com a sociedade civil, sobretudo aquelas que dizem respeito à
desconcentração regional de investimentos e contemplação da diversidade de
manifestações culturais? É possível uma política de Estado agraciada com 0,3%
do orçamento a União para 2016?
A resposta é simples: não.
Feliz 2017.
Também disponível em:
http://www.culturaemercado.com.br/
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