Não basta ser pai. Tem que participar...

Aquela famosa cena de mulheres queimando sutiãs em praça pública, na década de 1960, representando a liberdade das amarras da opressão masculina, foi seguida por uma série de mudanças na relação entre os sexos ou, o que passou a ser política e academicamente correto, gêneros. Cada vez mais donas de seu corpo, escolhendo usá-lo como parque de diversões (seu e de outros) ou fábrica de laticínios, escolhendo entre a carreira profissional ou o papel integral de mãe ou equilibrando as duas funções, as mulheres deram seu grito de independência da claustrofobia familiar e do estereótipo da parideira ajudadas pelo surgimento do leite em pó, dos potes de papinha Nestlé, das pílulas anticoncepcionais, das creches em horário integral. E, para aquelas com um desejo incontido de ter filhos, a inseminação artificial substituiu a necessidade de um parceiro fisicamente presente para cumprir o papel que se espera dele, na visão dos antiquados: garanhão. A ciência praticamente relegou os homens a um apêndice da identidade feminina. Na verdade, houve uma redefinição de papéis, seja no interior da família nuclear e extensa, seja no mundo do trabalho. Décadas depois de iniciada esta revolução de costumes, as mudanças bateram à minha porta.

Pela primeira vez, nosso filho ficou um mês em casa nas férias de verão. Até então, frequentava a colônia de férias oferecida aos alunos do horário integral, mas, como decidimos mudá-lo de escola, e nesta nova escola não há atividades no mês de janeiro, ficamos rendidos, sem saber o que fazer. Nossa empregada doméstica (ou “secretária”, para os hipócritas de plantão), faz a visita anual à família no nordeste neste período. Combinamos com os avós que cada lado, materno e paterno, ficaria com Miguel por uma semana, na segunda quinzena do mês; na primeira, o pai, eu.

Tentei estabelecer uma rotina, facilitando a organização das atividades diárias, ajudado pelo calor inclemente que assola o Rio de Janeiro desde o final de 2013, com temperaturas passando facilmente os quarenta graus. Depois do café da manhã e de um pouco de desenho animado na televisão, por volta de nove, nove e meia da manhã, saíamos de casa rumo à piscina do condomínio de minha sogra, num dos ônibus que passam pelo Flamengo rumo à Gávea, parando religiosamente na padaria na esquina da rua para o abastecimento de bebidas, invariavelmente as mesmas (suco Ades de uva e Guaraviton). Sempre um dos primeiros a chegar à piscina, por volta de dez horas, ficávamos até próximo de meio-dia, período em que praticamente não saíamos na água, mais por insistência do Miguel, cuja energia parece inesgotável. A caminho de casa, ainda era coagido a comprar um brownie (ok, é o melhor brownie da cidade, apesar da facada de R$ 9), sob a falsa alegação de que era “para a mamãe”.

Chegando em casa, íamos direto para o banho. Banho tomado, Miguel, de cueca, corpo bronzeado, um autêntico “menino do Rio”, aguardava o pai preparar o almoço. Na verdade, preparar é um exagero. A caminho de casa, na volta da piscina, nos habituamos a parar num restaurante de comida caseira, saudável e saborosa (sim, é possível ser saudável e saboroso), onde levávamos sempre uma quentinha bem fornida de arroz integral, feijão vermelho ou carioquinha, peito de frango a milanesa (tá bom, menos saudável...) e legumes refogados. Na cozinha, meu trabalho era unicamente colocar um pouco de cada coisa no prato de gente grande e fazer o suco de caju ou abacaxi e chamar Miguel para a cozinha, onde o almoço passou a ser dado, vitória dos pais sobre a concorrência quase desleal dos filmes da Disney ou Dreamworks. Meia hora depois, era a minha vez de comer.

A parte da tarde era um desafio. O que fazer nestas tantas horas de ócio? Bom, por mim, seria ócio, mas com uma criança de quatro anos e meio em casa, ativa, tal palavra é uma blasfêmia. Antes das cinco e meia, seis horas da tarde, era insalubre estar fora de casa, a menos que fôssemos ao cinema ou ao shopping (na verdade, esta não era uma opção, odeio shoppings). Passamos muitas tardes destas duas semanas alternando várias atividades. Vimos os desenhos animados favoritos dele, normalmente mais de uma vez, ou uma vez, mas repetindo determinadas cenas várias vezes; lemos contos de fadas, procuramos objetos perdidos no livro dos piratas e no das Tartarugas Ninjas; jogamos futebol de botão e jogo da velha, que Miguel está cada vez melhor; jogamos jogos de cartas e desenhamos cenas bucólicas no quadro negro que ele tem disponível numa das paredes do quarto; brincamos de Bem contra o Mal, ele o Bem, eu o Mal, ele Luke Skywalker, eu Darth Vader; corremos pela casa brincando de pique-pega; fizemos corrida com os carrinhos do Hot Wheels. Miguel ainda é mal perdedor, precisa aprender que nem sempre terá os louros da vitória.

Da janela do meu quarto, vejo se já há um pouco de sombra na pracinha em frente ao nosso prédio e se o calor já está um pouco menos sufocante, se já há crianças brincando no balanço. Se sim, proponho ao Miguel descermos um pouco, sou sempre a favor de ficarmos o máximo de tempo ao ar livre. Raramente ouvi dele uma negativa, concordando em descer contanto que levasse consigo o skate e seus aparatos de segurança. Na pracinha, Miguel impressiona com seu equilíbrio em cima da prancha de madeira e já arrisca umas manobras radicais, pelo menos para sua faixa etária, acredito. Voltou para casa mais de uma vez com alguns arranhões, nada grave, faz parte do crescimento, antes autonomia, liberdade e vento na cara sem medo de ser feliz do que tolhimento, censura, excesso de zelo (diferente de falta de zelo, porque não somos pais irresponsáveis). Parte da programação vespertina: pipoca e mate com limão. Imundo, suado e feliz. Banho tomado, barriga forrada, pronto para receber o amor da mãe que chega de mais um dia de trabalho, exigindo carinho nas costas e nas pernas para embalar o sono, Miguel se prepara para dormir e recarregar as baterias para mais um dia de diversão.

Estava lendo outro dia o relato de um comediante sobre a experiência de ser pai. Num determinado momento, ele fala do “tempo-bebê”, conceito que explica a realidade ilusória para a qual parece que somos dragados neste momento de nossas vidas. Diz ele: “coisas que parecem estar levando uma hora, não estão. Certa vez fiquei tão orgulhoso por ter entretido meu filho com grande sucesso durante uma tarde inteira. Projetei e construí uma imensa fortaleza de bloquinhos, joguei uma partida disputada de ‘cadê-o-nariz-do-papai’ e narrei uma leitura comovente de Haroldo hipopótamo, para então olhar no relógio e descobrir que na verdade sete minutos tinham se passado”. Identifiquei-me integralmente com essa sensação porque, ao final do dia, depois de tanto brincar, tomamos consciência que foram apenas algumas horas de um dia foram preenchidas, e que no dia seguinte a partida começa do zero.

O roteiro descrito foi mais ou menos reproduzido ao longo das duas semanas em que estive a cargo do pequeno herdeiro, incluindo-se aí uma ida à praia Vermelha que normalmente está própria para o banho, mas que, naquele dia em particular, estava bastante suja (de lixo, não de esgoto), a areia e a água, frustrando nós dois. Também envolvi outros pais na mesma situação de “desamparo escolar”, recebendo o melhor amigo dele lá em casa pela hora do almoço e o devolvendo no final da tarde, dando uma folga para os seus pais.

Esse revezamento aconteceu duas vezes. Levei-os à “lojinha”, que é como eles chamam a locadora de DVDs, onde escolheram um dos desenhos do Scooby-Doo, e comprei o sorvete “de caixinha”, que os adultos conhecem como Eskibon, sorvete de creme coberto de chocolate que, nesta versão moderna, vem numa pequena caixa e em várias quadradinhos, facilitando a divisão e não melindrando nenhum dos interessados. Para provar, tenho fotos dos dois comendo civilizadamente o sorvete, sentados na mesa da sala, em menos de dez minutos. Brincaram a valer e, no final do dia, desceram para a pracinha em frente de casa.

Também com o mesmo melhor amigo, fui, com os pais dele, a uma exposição de dinossauros, num shopping center da zona norte da cidade. Fomos e voltamos de metrô e, apesar de o horário não ser de pico, o vagão foi enchendo e enchendo ao longo do percurso, o ar condicionado não conseguia dar vazão e, no final das contas, por incrível que pareça, estava mais fresco do lado de fora do que do lado de dentro. Isto num dia em que a sensação térmica no Rio de Janeiro deve ter se aproximado dos cinquenta graus. Para piorar, Miguel ficou com medo das réplicas (e olha que nem havíamos chegado ao Tiranossaurus Rex) e, cinco minutos depois de iniciada a visita guiada, tive de retirá-lo. Na volta, os dois vieram “tocando o terror” dentro do vagão, eu não sabendo onde enfiar a cara de vergonha. Mas o que Miguel curtiu mesmo neste passeio foi o cheeseburger com suco de uva do Bob’s...

Ao final das duas semanas, estava bastante cansado, embora feliz. Sabe quando a gente acaba de correr no calçadão, exausto, mas sentindo que o dever foi cumprido? É por aí. Era um misto de prazer por ter proporcionado ao meu filho momentos felizes e partilhado com ele estes momentos, simplesmente estar ao seu lado e saber que ele se sentia confortado e protegido, mas cansaço, menos físico que mental, é verdade, por conta da intensidade da relação concentrada em poucos dias.


Não ajudei minha esposa. Voltando ao início deste depoimento, digo que concordo com as transformações na relação entre homem e mulher, seja no espaço público ou no espaço doméstico. É ridículo pensar que o homem deve ser o único responsável pelo provimento da casa, e a mulher a responsável pela gestão doméstica; que o homem não precisa fazer a cama, lavar a louça, dar banho nos filhos, fazer as compras do mês ou levar os filhos ao médico; que a mulher não pode sair para tomar um chope com as amigas depois do trabalho. Eu fiz a minha obrigação. Sorte do Miguel, que tem pais tão modernos. Que venham as férias de 2015!
Também disponível em : https://espacoacademico.wordpress.com

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