A intolerância nossa (deles) de cada dia


Tudo muito sutil. A turma da escola comemorava o final do ano com um churrasco no playground de uma coleguinha de sala, quase todo mundo estava presente lá, inclusive as professoras, a titular e a assistente. Ambas trouxeram seus companheiros, ou melhor, uma trouxe o companheiro, a outra trouxe a companheira. A professora heterossexual demonstrava sua heterossexualidade abertamente, quando bem quisesse, a professora homossexual não demonstrava sua homossexualidade de jeito algum, ou melhor, discretamente, quase imperceptível, apenas para quem, olhando numa certa direção, observasse um singelo carinho furtivo de mãos envergonhadas. Ao menos pareciam envergonhadas, a despeito de o ambiente ser favorável à livre expressão do afeto, seja ele da forma que surgir, afinal, estamos falando de um grupo que decidiu matricular os filhos (e filhas) numa escola que estimula o respeito à diversidade, dentre elas a sexual.

Naquele momento, tive orgulho de ser parte daquele ecossistema, mais do que tolerância estamos falando de convivência com o outro, que pensa e age diferente da gente e que, nem por isso, deve ser relegado à inferioridade, ao estigma, à marginalidade social, ser jogado do alto de um prédio (como no “califato” do Estado Islâmico), crucificado (como no Sudão), apedrejado (como no Irã), levar chibatadas (como na Arábia Saudita). Ao mesmo tempo, senti tristeza por verificar que, mesmo em ambiente controlado e amigável, o casal de namoradas não se sentia à vontade para expressar livremente seu amor, nem mesmo um beijo na bochecha. Seria vergonha? Receio de ferir suscetibilidades de alguém, já que na prática a teoria é outra? Já teria incorporado no seu dia-a-dia um ethos socialmente aceito, relegando ao espaço privado o carinho e a intimidade restritos publicamente aos “normais”?

Fiquei desconfortável por ver, diante de mim, um comportamento que reproduz a invisibilidade social, que não desafia o preconceito e a intolerância, que prefere adaptar-se camaleonicamente, em Roma como os romanos, quem sabe em nome da própria preservação física. O multiculturalismo muitas vezes se transfigura em guetos dos mais diversos tipos, étnicos, religiosos, sexuais, que pretensamente protegem as “minorias” do extermínio. Quando os muros dos guetos medievais foram postos abaixo, muitos judeus sentiram-se ameaçados pela vida nova que se abria à sua frente, temiam o fim de sua comunidade como consequência da incorporação física e simbólica à sociedade que os acolhia. Não foi isso que aconteceu. O massacre ocorrido neste final de semana na boate LGBT em Orlando, na Flórida, onde cinquenta pessoas foram mortas e outras dezenas ficaram feridas é o mais recente exemplo do que falo, de que mesmo estes guetos, ou melhor, focos de resistência, não estão livres da fúria intolerante e doentia.

Algo de muito errado há em nossa sociedade quando é motivo de comentário ou espanto o fato de um casal gay masculino estar aos beijos num ônibus, quando ainda não consideramos esta representação de afetividade algo comum, normal, natural, porque é, sim, comum, normal e natural. Algo de muito errado há em nossa sociedade quando uma parada gay tem de afirmar-se orgulhosamente, porque é a forma que os gays encontraram de contrapor-se à intolerância. Um dia apenas desfilarão, sem orgulho, porque a identidade sexual não deve ser motivo de orgulho ou vergonha. Deve ser, e ponto final. Nada de condescendência, piedade, tolerância, cidadania de segunda classe.

Pouco depois de entrar na faculdade de ciências sociais, uma colega perguntou se eu era judeu. Por quê? Por que ela queria saber? Que interesse espúrio ela teria? Tinha já uma piada engatilhada? Na minha paranoia, recém-saído de uma escola judaica que, hoje, percebo à época como ensimesmada, afastada do mundo que acontecia além da porta de entrada, desvinculada da sociedade lá fora, tanto assim que, no impeachment do Collor, só uns gatos pingados resolveram seguir a multidão de estudantes que passava na Rua das Laranjeiras em direção ao centro da cidade, pensava estar em perigo se fosse descoberto. Queria manter-me invisível, como o casal de namoradas. E este receio virou motivo de piada por anos a fio. Pimenta nos olhos dos outros é refresco, eu sei.  Não critico o cuidado na exposição de suas preferências sexuais, tenho é muita raiva desta sociedade moralmente doente que percebe o diferente, seja esta diferença qual for, como desvio a ser corrigido, curado, como querem certos “psicólogos” inspirados em doutrinas religiosas, estes sim necessitados de internação urgente.


Tal qual Zelig, o camaleão humano de Woody Allen, sinto a dor desta barbárie homofóbica.

Pra cima deles, bibas. No pasarán!!! 



Comentários

Telmo disse…

A propósito da última frase, a relação entre as religiões e as discriminações religiosas pode ser melhor entendida nas pesquisas abaixo:
http://saudepublicada.sul21.com.br/2015/08/31/religiao-e-laicidade-discriminacao-e-violencia/