Criminalizando a vítima


Em 2013, a norueguesa Marte Dalelv foi sentenciada a dezesseis meses de prisão por autoridades de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, por fazer sexo fora do casamento. A sentença foi dada após Dalelv ter procurado a polícia e denunciado um colega de trabalho por estupro. Ela foi perdoada. Não ficou claro se o perdão concedido se deveu à tradição de clemência durante o mês sagrado do Ramadã, tampouco se sabe se foi mantida a sentença contra o “suposto” estuprador, identificado como um sudanês de 33 anos acusado de consumir álcool e fazer sexo fora do casamento. Também não sabemos, a partir das notícias veiculadas à época, se os envolvidos eram casados ou não. Três anos depois, a tragicomicidade se repete. Uma corte do Catar condenou, há poucos meses, uma holandesa de 22 anos por fazer sexo fora do casamento depois que ela procurou a polícia para denunciar ter sido estuprada. Segundo o seu advogado, a holandesa estava de férias e teve uma bebida alcoólica “batizada” com alguma substância dopante, acordando no dia seguinte no apartamento de um homem desconhecido. O “suposto” estuprador, que alega ter feito sexo consensual, receberá cem açoitadas por fazer sexo fora do casamento e outras quarenta chibatadas por consumir álcool.

Ambos os casos são exemplos de países em que o machismo é institucionalizado, em que a mulher vale tanto quanto uma nota de três reais. A condenação estapafúrdia por sexo fora do casamento, apesar do “parceiro” também ter sido condenado, prova que as leis que regem tais sistemas judiciários são condescendentes com os predadores, transformando vítimas em criminosos. A condescendência machista, não coincidentemente, abre as portas para estupros coletivos como aqueles ocorridos na Índia, onde, também em 2013, uma turista suíça foi estuprada por uma gangue na frente de seu marido. As autoridades indianas, surpresa!, acusaram parcialmente o casal de incautos porque, crime dos crimes, decidiram passear de bicicleta por uma área remota arborizada antes de se informarem sobre as “condições de segurança” da região.

Misoginia vem acompanhada, invariavelmente, de homofobia. Segundo dados recentes da International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association – ILGA, que monitora as leis ligadas ao tema, relações entre pessoas do mesmo sexo são consideradas crime em nada menos do que 73 países. É a chamada “homofobia de Estado”. O número de países que criminalizam a homoafetividade representa 37% do total de estados membros da Organização das Nações Unidas – ONU. Segundo o relatório, treze países preveem pena de morte para atos sexuais consentidos entre pessoas adultas de mesmo sexo; em quatro deles (Sudão, Arábia Saudita, Irã, Iêmen), a pena é efetivamente aplicada pela Justiça no país inteiro. Em outros cinco, dentre eles Catar e Emirados Árabes Unidos, não há registro de aplicação específica recente, embora o condenado possa ficar até 14 anos na prisão fora o resto (chibatadas, açoites e outras punições tão bárbaras quanto a cadeira elétrica, diga-se de passagem, antes que os politicamente corretos de plantão lembrem dos EUA, onde os direitos humanos também não são lá tão respeitados).

Não é necessária a homofobia de Estado para que homossexuais procurem, cada vez mais, asilo político em países que protejam seu direito humano básico, o direito de simplesmente existir e ser feliz com segurança. O autor do relatório divulgado pela ILGA não advoga direitos especiais, mas direitos humanos.

“Há muitos casos de violência pelo mundo que são puramente violações dos direitos humanos, então, não dá para entender por que isso ainda é um tema problemático. Será que algumas vidas são mais importantes do que outras?”

De acordo com a edição de 2015 do relatório “Estado dos Direitos Humanos no mundo”, publicado pela Anistia Internacional, 312 pessoas foram mortas no Brasil fruto do ódio homofóbico no ano de 2013, praticamente um homicídio por dia.  Se é verdade que o Brasil não é um Irã ou um Sudão, em que ser homossexual é sentença de morte, e que avanços foram logrados, como os direitos civis de casais homoafetivos, também é verdade que a homofobia é uma realidade social que precisa ser combatida. Sua não criminalização é parte do fortíssimo lobby medieval capitaneado por políticos-marionetes ligados à bancada religiosa e de extrema-direita laica, motivo mais do que suficiente para o aumento no número de solicitações de asilo político feitas por brasileiros tendo por justificativa o crime de ódio homofóbico.

No início dos anos 2000, surgiu uma campanha de boicote mundial contra Israel, baseada no movimento antiapartheid sul-africano, chamada BDS – Boicote, Desinvestimento e Sanções, acusado de antissemitismo pelo governo ultranacionalista de Bibi Netanyahu, acusação ridícula se levarmos em consideração que grupos de israelenses e de judeus mundo afora apoiaram a iniciativa surgida na Cisjordânia. Por que não utilizar a mesma tática contra os petrodólares dos xeques e emires investidos na Europa, na compra de populares equipes de futebol como o Paris Saint-Germain e o Manchester City, e no marketing feito na camisa do Barcelona? É uma boa oportunidade para Estados que se dizem democráticos provarem que a defesa dos direitos humanos está acima de interesses econômicos. Lembremos que o Catar sediará a Copa do Mundo de 2022 (alguém acredita que a escolha foi imparcial, técnica?) e que o país é acusado de utilizar mão-de-obra escrava na construção das instalações futebolísticas. Com relação aos países miseráveis que continuam a criminalizar a homoafetividade, e a lista é enorme (Bangladesh, Botsuana, Eritreia, Libéria, Serra Leoa, Sudão do Sul, Uganda, Zimbábue etc.), resta a pressão internacional.

Logo no primeiro período da faculdade de ciências sociais, na cadeira de Introdução à Antropologia, aprendemos que o ofício de antropólogo resume-se a estranhar o familiar e compreender o estranho, familiarizando-o. Compartilho, obviamente, antropólogo que sou, desta premissa. No entanto, há limites para tudo. É fundamental o estabelecimento de um plano comum construído a partir do compartilhamento de certos valores, o principal deles sendo o respeito a direitos humanos básicos, sobre o qual deve se assentar o convívio com o diferente e o respeito à diversidade cultural. Matar ou prender gays por serem gays, estuprar mulheres por serem mulheres, acho, não estão no rol de tais valores.  

Não podemos ser tolerantes com os intolerantes em nome da tolerância.



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