O vilarejo de Brok é uma estância turística com cerca
de três mil habitantes, a cerca de noventa quilômetros de Varsóvia, capital da
Polônia. Seus primórdios datam do século dezessete, e sua economia era baseada,
à época, essencialmente no pequeno comércio e no artesanato. Os primeiros
judeus de Brok vinham da cidade de Plock, antiga capital polonesa durante o
século onze e, aproveitando o potencial turístico do local, beneficiaram-se de
novas oportunidades econômicas, sobretudo a abertura de estalagens aos
visitantes que iam para lá curtir o “calorão” do verão da Europa Central.
Pequenos hotéis e restaurantes servindo comida kosher (preparada segundo as
leis dietéticas da religião judaica) surgiram, e os negócios já existentes
prosperaram. A excelência das padarias de Brok era reconhecida até mesmo pelas grandes
comunidades judaicas de Varsóvia e Lodz, que de lá importavam o pão ázimo que
os judeus comem durante o Pessach, a Páscoa Judaica.
A maioria dos meninos judeus estudava nos tradicionais
heders (escolas primárias religiosas), e as meninas, por sua vez, nas Beth Jakob
ou Casa de Jacó (meninos e meninas estudavam em escolas separadas). No período
entre as duas grandes guerras mundiais, a educação se tornou obrigatória na
Polônia, então, a criançada judia de Brok passou a frequentar a escola primária
local lado a lado com os pequenos não judeus.
Brok foi ocupada pelo exército alemão no dia oito de
setembro de 1939. No dia seguinte, a cidade foi incendiada, muitos dos seus
moradores foram queimados vivos, dentre eles, cerca de quarenta judeus.
Trezentos sobreviveram ao escapar em direção à antiga União Soviética.
Meu avô materno era de lá. Antes de estourar a segunda
guerra mundial, saiu do shtetl – o típico vilarejo judaico imortalizado nos
contos de Scholem Aleichem – para estudar em Vilna, na Lituânia. Os judeus
estavam presentes na Lituânia desde o final do século XIV, quando lhes foi
concedida permissão de ali viver, com direitos próprios e determinados
privilégios. Já no século XVI passaram a viver na região muitos judeus, que
desenvolveram suas comunidades com infraestrutura adequada e certo bem-estar
social. Até o início do século XX prosperou ali uma rica cultura judaica,
manifestada nas diversas instituições científicas, políticas e de ensino, em
centros religiosos, teatros, editoras e jornais. Com 110 sinagogas, Vilna se
transformou na “Jerusalém do Norte”, metrópole que exercia fascínio sobre
pessoas para além das fronteiras lituanas. Incluindo meu avô, que para lá
seguiu em busca de uma formação acadêmica sólida no que, hoje, poderíamos
chamar de Faculdade de Letras.
Com o início do conflito, em 1939, meu avô não pôde
retornar para casa. As circunstâncias o levarão cada vez mais para o leste,
chegando a Kobe, no Japão, onde, apesar de estar em território inimigo por ser
o Japão parte do Eixo, conseguiu de um benevolente cônsul nipônico visto temporário
de permanência. O périplo não terminou aí. Pouco depois, rumou para Xangai, na
China. Finda a guerra, voltou à Europa com a esperança (será?) de encontrar
algum parente vivo, o que não ocorreu. Seguiu para o Uruguai, ao encontro de um
parente, onde conheceu minha avó, onde casaram e tiveram minha mãe, de onde
partiram para São Paulo e, posteriormente, finalmente, atracaram no Rio de
Janeiro. No Rio de Janeiro, foi um brilhante jornalista.
Uma das possíveis narrativas do Mito do Judeu Errante
dá conta que certo sapateiro chamado Ashver afastou Jesus Cristo de sua porta e,
por tal ato, foi amaldiçoado pelo rabino, sendo condenado a perambular pelo
mundo. O Mito sintetiza a ideia da “nação judaica” dispersa pelo mundo,
espalhada pelos quatro cantos da terra, condenada a vagar, “perambular sem
pouso”, resignar-se à condição de estrangeiro de tudo. As andanças de meu avô
comprovam o Mito, apesar de ter conseguido porto seguro no Rio de Janeiro? Será
este porto seguro permanente ou temporário? Estaremos, nós judeus, condenados
efetivamente à errância, ao desenraizamento, à impossibilidade de criação de
laços de solidariedade que transcendam uma imaginária fronteira étnica ou
religiosa? Meu avô, creio, por ser descrente (não sei se ateu), duvidaria desta
tese. Ele errou involuntariamente sim, mas, senhor de si, tomou as rédeas de
sua vida e conseguiu seguir adiante, rocha quase impenetrável, consta que a
única vez que o viram chorar foi numa visita a Auschwitz. Também, pudera.
Podemos dar um sentido positivo ao “judeu errante” se
a errância for voluntária, uma opção, uma determinação consciente de desbravar
o mundo, de estabelecer inúmeras conexões de identidade, inúmeras “conexões
laterais”, na feliz expressão do antropólogo James Clifford. Mas a realidade insiste em atualizar, infelizmente,
o Mito, embora os motivos do desterro sejam antes de tudo mundanos, humanos.
Divulgado no início desta semana, o relatório
Tendências Globais, da Agência das Nações Unidas para Refugiados – Acnur, que
registra o deslocamento forçado de populações ao redor do mundo com base em
dados dos governos e agências parceiras, informa que o total de pessoas
deslocadas – homens, mulheres e crianças forçadas a deixar suas casas em razão
da guerra ou de perseguições – chegou em 2015 a 65,3 milhões em todo o mundo.
Trata-se, de acordo com a Acnur, da maior crise de refugiados e migração desde
a Segunda Guerra Mundial. Duas razões explicam o aumento exponencial de
refugiados: situações que causam grandes fluxos de refugiados estão durando
mais (por exemplo, conflitos na Somália ou no Afeganistão estão em sua terceira
e quarta décadas, respectivamente); novas ou antigas situações dramáticas estão
ocorrendo frequentemente (o maior conflito atual é na Síria).
José Saramago, num texto publicado no seu blog em que
ironiza a pretensa oposição entre jovens e velhos, os primeiros cheios de novas
ideias e energia, os segundos céticos e desesperançosos, afinal, os velhos já
foram jovens e os jovens ficarão velhos eventualmente, escreveu:
“Escrevo isso no dia em que chegaram à Espanha e à
Itália centenas de homens, mulheres e crianças nas frágeis embarcações que
utilizam para alcançar os supostos paraísos de uma Europa rica. À ilha de El
Hierro, nas ilhas Canárias, chegou um barco desses, levando dentro uma criança
morta, e alguns náufragos declararam que, durante a viagem, morreram e foram
jogados ao mar vinte companheiros de martírio... Que não me falem de ceticismo,
por favor.” (tradução livre)
O texto é do dia 11 de novembro de 2008, e os jovens
nada fizeram. A crise humanitária que vivemos hoje, com a multiplicação de
barcos tentando deixar a África, sobretudo, e que rotineiramente afundam porque
não foram construídos para levar centenas de pessoas ao mesmo tempo, é prova
disso. Hoje, o judeu errante é sírio, afegão, somali, palestino, sudanês,
líbio, iraquiano, haitiano, etíope, nigeriano. Judeu errante muçulmano, judeu
errante cristão.
Gosto do antigo Roberto Carlos, não esse que escreve
baladinhas pra novela das oito. Aquele de Todos Estão Surdos. Sou ateu, mas a
letra cai como uma luva pro que penso dos dias atuais:
“Outro dia, um cabeludo falou:
‘Não importam os motivos da guerra, a paz ainda é mais
importante que eles’.
Esta frase
vive nos cabelos encaracolados, das cucas maravilhosas,
Mas se
perdeu no labirinto dos pensamentos poluídos pela falta de amor.
Muita
gente não ouviu porque não quis ouvir.
Eles estão
surdos”.
Referência bibliográfica
SARAMAGO,
José. El cuaderno. Buenos Aires:
Alfaguara. 2009.
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