A culpa é do gato

Gatos são despertadores naturais. Invariavelmente, lá pelas cinco da matina, Leopoldo, nosso caçula de dois anos que Miguel trata como filho legítimo, começa a arranhar as portinholas do quarto de casal que dá para o “escritório”. Como fingimos ignorá-lo, ou melhor, finjo ignorá-lo, porque Renata, normalmente, continua a roncar, Poldo chama a atenção tentando alcançar as chaves da porta que dá para o corredor. Não consegue alcança-las, embora o barulho seja irritante. Pequenos miados se seguem. Nova estratégia: sobe na cama e passa a importunar Guilhermina, nossa filha felina do meio, que dorme enroscada nas minhas pernas ou da senhora Sant’Anna Gruman. Apesar de castrado, Leopoldina (apelido dado por Miguel) sobe em cima de Mina que, contrariada, passa a rosnar, logo ela, a mais doce dos três gatos da casa. A terceira e mais velha, Guadalupe, resolve aparecer, também sobe na cama, se posta na minha frente com um bafo terrível e começa a lamber minha cara. Pronto, conseguiram. Tiraram-me do sério, levanto-me contrariado. Vou até a cozinha, verifico que os esfomeados esvaziaram as vasilhas de ração e beberam toda a água, reponho tudo e volto para a cama, mas o sono já foi embora e não voltará tão cedo.

Está escuro, ainda não ouvimos o toque da alvorada do quartel do corpo de bombeiros que fica em frente ao nosso prédio. Ligo a televisão. Nos canais abertos, exceção da Rede Globo e do SBT, apenas programas religiosos. Em 2015, o Ministério Público Federal de São Paulo protocolou duas ações civis públicas contra emissoras de TV e rádio que alugavam horários para programas religiosos, argumentando que esse tipo de contrato é ilegal, pois caracteriza alienação da concessão pública. Uma das ações foi contra emissoras do grupo CNT, que concedia 22 horas diárias à Igreja Universal do Reino de Deus.
Não sei o desfecho da ação do MPF paulista. Sei, sim, que, antes das seis da manhã, estava eu à frente da TV e um pastor da mesma Igreja Universal do Reino de Deus, da mesma emissora vinculada ao grupo CNT, apresentava um programa chamado “Saindo da crise” e convocava os telespectadores ao Congresso para o Sucesso. Atrás deste telepastor, uma meia dúzia de rapazes, vestidos com roupa social e de pé, aguardavam ligações telefônicas dos desesperançados, sofredores, desempregados, numa espécie de SOS espiritual, terapia fast-food, bem mais em conta que a tradicional..
No site da Igreja Universal do Reino de Deus, algumas perguntas que parecem saídas daqueles comerciais das Organizações Tabajara: Todo mês tem sido uma luta para você conseguir pagar as contas? As dívidas parecem não ter fim?  Com isso o seu casamento foi prejudicado e você gostaria de poder fazer muito mais pela sua família, mas não pode?
Pois bem. Seus problemas acabaram!
“Os problemas financeiros fazem parte da vida da maioria da população, e o mercado oferece muitas formas para tentar solucionar essas dificuldades e prosperar. Porém, para se estabelecer financeiramente, apenas uma é eficiente. E ela não é ensinada nos cursos de economia, mas adquirida quando se usa a fé inteligente”.
Durante a palestra Congresso Para o Sucesso, “que todas as segundas feiras tem (sic) reunido mais de 10 mil pessoas no Templo de Salomão” as pessoas “aprendem a construir e realizar sonhos profissionais e descobrem talentos que antes nem imaginavam possuir”. Para aqueles que aplicam os ensinamentos das palestras, sonhos se transformam em realidade, a água se transforma em vinho.
Levante a bunda do sofá, corra atrás do seu sonho, lute por seus objetivos. Torne-se um milionário, ora bolas.
“Você sabia que a cada 27 minutos um brasileiro ingressa no clube dos milionários? Não há duvidas de que qualquer um quer estar dentro desse número. Mas não basta apenas querer, tem que fazer por onde”.
E não se preocupe se, na noite anterior, você encheu a cara ou foi pra balada e não acordou com o galo cantando. O Congresso para o Sucesso acontece todas as segundas-feiras, às 7h, 10h, 12h, 15h, 18h30 e, especialmente, às 22h, no Templo de Salomão. Este “especialmente” é por conta de quem escreveu a matéria no site da IURD. Fiquei curioso. Não a ponto de fazer uma pesquisa de campo, dei um tempo na carreira antropológica, mas financiaria, incluído o dízimo, alguém que se dispusesse a dirimir a curiosidade. Cartas para a redação.

Não perderei tempo discutindo filosoficamente a expressão “fé inteligente” porque há, aqui, uma contradição nos termos. Já dizia João Saldanha que “se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminava empatado”. É espantoso que dez mil pessoas depositem, exclusivamente em critérios subjetivos, todas as segundas feiras, a felicidade no casamento e nos negócios, ainda que a tal “fé inteligente” seja apresentada como um caminho racional. É óbvio que nem todos, ou melhor, muito poucas destas dez mil pessoas obterão sucesso na vida profissional porque, ingênua e incapaz e enxergar a realidade, a maioria não entende que o desemprego que graça no Brasil, hoje, tem causas estruturais, bem objetivas, nada transcendentais. O próprio fato de o Templo de Salomão permanecer cheio prova que a bem-aventurança é destinada a um grupo seleto de eleitos. Deus da bondade, sei...

Este tipo de marketing religioso é uma bofetada na cara de quem tem de lidar com a falta de emprego e, sobretudo, a falta de perspectiva de conseguir uma vaga no mercado de trabalho. Abrir o próprio negócio, na onda do empreendedorismo, deixou de ser uma escolha para muita gente, passou a ser a única alternativa para manter um mínimo de dignidade depois da última parcela do salário-desemprego. Um mínimo de rendimento que lhes permita pagar ou diminuir as dívidas com os bancos, com a financiadora da casa própria, com a empresa de energia elétrica, de gás, de água, com a escola particular (se é que já não frequentam a escola pública do estado, em greve há meses no Rio de Janeiro), comprar os produtos da cesta básica, trocar o peito de peru por mortadela.


Leopoldo, por favor, a partir de agora me acorde às 8h. Tomarei o café e seguirei para o trabalho. Nada de televisão.

Leopoldo, achando que cabe na caixa...

Link:

http://www.universal.org/reunioes/prosperidade

Comentários

Unknown disse…
costumava criticar bastante essas atitudes das igrejas evangélicas em geral, porém cheguei a conclusão que se as pessoas se sentem melhor fazendo esses atos e essas doações, então que continuem. Algumas pessoas se sentem melhor bebendo, outras comendo e eles ouvindo e acreditando (deixo claro que não acredito. não vejo e me irrito) naquele "pastor", talvez aquele momento o que apenas eles precisem é acreditar que tem alguém olhando por eles...
Sandra Pinto disse…
Tanto já se alertou sobre esses charlatães de plantão e ainda tem gente que cai nessa!
Marcelo, se Leopoldo continuar acordando cedo, levante-se, tome um café forte, faça yoga, respire e ligue o rádio!