No final de 2013, meus pais, com quem não moro há mais de uma
década, receberam uma carta da SERASA, empresa privada criada por bancos e
financeiras que armazena dados cadastrais de empresas e cidadãos bem como
apontamentos que indicam dívidas vencidas e não pagas. Tais informações são
fornecidas a bancos, lojas do comércio, pequenas, médias e grandes empresas,
que pagam para obtê-las. O objetivo da SERASA, bem como do Serviço de Proteção
ao Crédito – SPC, este sendo órgão da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas,
é tentar garantir que seus clientes não sofram calote, quer dizer, não recebam
por serviço prestado ou produto vendido. Uma loja pode se recusar a vender a um
consumidor que esteja na “lista negra”.
Na carta endereçada a mim, a SERASA oferecia um desconto
generoso para a quitação de uma suposta dívida feita junto a certa prestadora
de serviços telefônicos. Liguei para o número fornecido, e a atendente confirmou-me
a dívida, contraída há vários anos. Descobri que o meu CPF havia sido fraudado
e que o fraudador havia dado como endereço residencial uma rua num bairro no
qual nunca havia posto os pés. Minha advogada orientou-me a tirar certidão
negativa de débitos também junto ao SPC e, para maior surpresa ainda, descobri
que havia outra dívida contraída também junto a uma operadora de serviços
telefônicos pouco tempo depois da primeira fraude. Acredito que o “171” foi o
mesmo nos dois casos. Belo presente de natal!
Em janeiro de 2014, demos entrada no Juizado Especial Cível
(antigo Juizado de Pequenas Causas), uma vez que a causa era considerada de
“menor complexidade” e a demanda não chegava a vinte salários mínimos. O juiz
nos deu antecipação de tutela, ou seja, as empresas de telefonia deveriam
retirar meu nome da “lista negra” imediatamente, até que o caso fosse julgado.
Isto acontece quando há presunção de inocência do impetrante da ação, embora
todos os trâmites legais devam ser seguidos, com amplo direito de defesa dos
réus. Na primeira audiência, chamada de conciliação, marcada para o mês de
abril, não houve acordo. Seis meses depois, em outubro, nova audiência
realizada e apenas uma das empresas aceitou o diálogo; a outra, não, e o caso
se arrasta desde então.
Minha iniciação no sistema judiciário brasileiro completou
dois anos e meio. O principal objetivo era a “limpeza” de meu nome junto aos
serviços de proteção ao crédito, o que foi feito logo no início do processo. O
resto, a indenização pecuniária, que não serei hipócrita dizendo que não
interessa, parece ter entrado no buraco negro dos trâmites burocráticos, ainda
que seja possível acompanhar o desenrolar do processo online, o que, devemos reconhecer, é um enorme avanço no tema “transparência”
do sistema judiciário brasileiro, via de regra hermético ao cidadão comum,
dependente de advogados que podem ou não conhecer o caminho das pedras para
acelerar a resolução da pendenga.
No seu discurso de posse na presidência do Supremo Tribunal
Federal em setembro de 2014, o ministro Ricardo Lewandowski citou o sociólogo
português Boaventura Souza Santos ao afirmar que vivemos o fenômeno da
“explosão de litigiosidade”, representando “uma busca do homem comum, do homem
do povo, por seus direitos, que descobriu que pode alcançá-los pela via
judicial”. Segundo o ministro, a Constituição de 1988 “escancarou” as portas do
Judiciário porque colocou à disposição dos cidadãos vários novos instrumentos
de acesso à Justiça, além do princípio da inafastabilidade da jurisdição,
segundo a qual nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito pode ser subtraída à
apreciação do Judiciário. Em 2013, segundo o Conselho Nacional de Justiça,
tramitaram cerca de 95 milhões de processos.
Para Lewandowski, os magistrados brasileiros - cerca de
16.500 juízes - realizam esforço “quase sobre-humano” ao proferirem mais de 25
milhões de sentenças, resultando uma média de cerca de 1.600 para cada um
deles. Apesar do “excepcional desempenho”, segundo o presidente do STF, a taxa
de congestionamento processual chega a quase 71% das ações em trâmite devido,
em grande parte, aos quase 6.500 cargos em aberto por motivos que vão desde a
falta de verbas para preenchê-los até a carência de candidatos motivados ou
qualificados.
As loas cantadas à atuação do Judiciário brasileiro
culminaram, no discurso de posse, na defesa do aumento do salário dos
magistrados e servidores de modo a “restaurar (lhes) a autoestima”, cuja
importância, “no tocante à relevante tarefa de pacificação social, que realizam
diuturna e anonimamente, não tem sido adequadamente reconhecida pela sociedade
e autoridades em geral”. A recuperação de perdas salariais garantiria,
portanto, uma “remuneração condigna com o significativo múnus público que
exercem, bem como assegurar-lhes adequadas condições materiais de trabalho,
além de proporcionar-lhes a oportunidade de permanente aperfeiçoamento
profissional mediante cursos e estágios aqui e no exterior”.
O ministro está no seu papel ao defender o aumento salarial
da categoria da qual faz parte, e concordo mesmo que suas atribuições façam jus
aos altos rendimentos percebidos mensalmente. A questão é que o aumento dificilmente
reverterá em maior eficiência de juízes e demais servidores do Judiciário
diante do esforço já “sobre-humano” empreendido nas atuais circunstâncias. É imperativa, isto sim, a recomposição dos
quadros, e não o aumento de vencimentos não tão defasados quanto o de outras
categorias. Os defensores da Justiça deveriam ser os primeiros a reconhecer o
óbvio. É estranho ouvir que há carência de candidatos “motivados”, sabendo de
antemão que o salário não é dos piores, muito antes pelo contrário. Detalhe:
acaba de ser aprovado reajuste de 41% nos vencimentos dos servidores do poder
judiciário, escalonado em oito parcelas; os
salários ministros do Supremo Tribunal Federal passarão de R$ 33.763,00 para R$
39.293,38. Nada mal.
O meu caso é igual ao de milhares de outros cidadãos. Senti
na pele como o Estado brasileiro é lento, paquidérmico, inatingível, cujas
ações seguem um ritmo que não interessa, na maior parte das vezes, àqueles que
dele precisam e que são, no frigir dos ovos, sua razão de ser. É uma entidade
que paira sobre nós, à espreita, pronta para abocanhar o quinhão correspondente
dos impostos que pagamos, insaciável, dando quase nada em troca.
Até quando o Estado será nosso inimigo? Que mensagem a
morosidade da justiça passa à sociedade? Que o crime compensa?
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