No último domingo, a família Sant’Anna Gruman fez um
dos seus programas favoritos de final de semana, um pic-nic com amigos no
Aterro do Flamengo, maior parque urbano do mundo, idealizado pelo paisagista Roberto
Burle Marx. O dia estava perfeito, céu azul, temperatura agradável, típica do
inverno no Rio de Janeiro. As pistas expressas que cortam o Parque, uma em
direção ao centro da cidade, outra em direção à zona sul, ficam fechadas ao
tráfego até o final do dia. Elas são ocupadas por gente caminhando, corredores
amadores, ciclistas, skatistas, pais brincando de bola com seus filhos, enfim,
é a apropriação mais do que saudável do espaço público pelo cidadão carioca.
Quando nos preparávamos para “levantar acampamento”, vimos
um carro passando lentamente na pista em direção ao centro da cidade. Os
frequentadores começaram a vaiá-lo e, de repente, um ciclista se posta à frente
do veículo e dali não saiu mais. A cena durou alguns minutos. De longe,
observei algumas pessoas se aproximando e tentando, ao que tudo indicava, argumentar
com o infrator da lei que não era permitido o tráfego de automóveis naquele
horário. Cada vez mais gente se aglomerava quando apareceram dois guardas
municipais devidamente motorizados e uniformizados que chegaram, para surpresa
e indignação de todos, não para demover o motorista da ideia de seguir adiante
e multa-lo de acordo com o Código Brasileiro de Trânsito, mas para escolta-lo
até o seu destino. A surpresa maior, contudo, veio em seguida, quando, ao abrir
a janela, descobrimos que se tratava de um guarda municipal também. Os cidadãos
ultrajados passaram a questionar o comportamento dos agentes da lei, mas não
receberam qualquer resposta, enquanto o motorista falava ao telefone celular, fingindo
ignorar a situação constrangedora (para ele e a instituição que representa,
ainda) que se desenrolava. Deu meia volta e, escoltado pelos cúmplices, foi
embora aos gritos de “safados”. Neste momento, tudo era filmado e “subido”
instantaneamente para o Facebook, Twitter e outras redes sociais.
A Guarda
Municipal do Rio de Janeiro foi criada em 1992 com a finalidade de "proteger
bens, serviços e instalações municipais, contribuindo para a qualidade de vida
da população". Dentre suas funções institucionais constantes na Lei
Complementar nº 100, de 15 de outubro de 2009, que criou a autarquia Guarda
Municipal estão, ironicamente, as seguintes: fiscalizar, organizar e orientar o
tráfego de veículos no território municipal observadas estritamente as
competências municipais; estabelecer, em conjunto com os órgãos de polícia
ostensiva de trânsito, as diretrizes para o policiamento de trânsito, no âmbito
do Município; cumprir e fazer cumprir a
legislação e as normas de trânsito, no âmbito de atribuição do Município; executar
a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as penalidades de advertência por
escrito e ainda as multas e medidas administrativas cabíveis, inclusive por
infrações de circulação, estacionamento e parada previstas no Código Brasileiro
de Trânsito, notificando os infratores, no âmbito de atribuição do Município; participar de projetos e programas de educação e segurança de trânsito de acordo com as
diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Trânsito–CONTRAN (grifos
meus).
Pego uma carona no
comentário que meu pai fez dia desses, a respeito da infame malandragem, o “jeitinho”
que insiste em dar as caras no nosso cotidiano, seja na relação entre os
cidadãos ou entre os cidadãos e o poder público:
“(...) o que acontece
quando o Menino vai a caminho do mar, mas não tem corpo dourado. De cara,
sinaleiras sonoras nas garagens, o que é proibido por legislação municipal.
Poucos passos adiante, um bar que superlota todos os dias, não tem isolamento
acústico e inferniza a vida de centenas de famílias. Atravessando a rua,
esbarra em flanelinhas, livres e operantes quase em frente a uma delegacia
policial. Acabou? Que nada. Na orla, pedestres dão uma banana para as placas
amarelas e invadem a ciclovia. Aos domingos, são as bicicletas que, em
velocidade homicida, invadem a área de lazer. Tudo faz parte de uma
“delinquência branda”, invenção surrealista dos cariocas, que parecem ficar
indignados apenas com crimes de morte (nem todos) ou espancamentos de celebridades.
Criaram a curiosa hierarquia de pequenos e grandes crimes. E que se dane o
mundo!”
O comentário irretocável, voltado, sobretudo, aos
moradores da cidade, serve perfeitamente ao episódio do Aterro do Flamengo, com
a agravante de tratar-se de um agente público cuja atribuição primordial é a manutenção
das regras que orientam as relações sociais no espaço comum da rua, da praça,
do parque. A hierarquia de pequenos e grandes crimes foi usado pelo motorista
infrator, afinal, seguia em marcha lenta, não atropelaria ninguém (há
controvérsias, um passante disse uma criança quase foi atingida), não estava
roubando nem matando, ia logo ali na frente, o retorno era muito longe, quebra
um galho aí.
Na cabeça dos agentes públicos, ELES são o Estado e não seus representantes, autoridades
autorizadas por nós, cidadãos, a fazer cumprir a lei por todos, eles inclusive.
A crise moral que vivemos, especialmente em relação à apropriação privada de espaços
e bens públicos (em muitos casos, literalmente, envolvendo muitos milhões de
reais) atinge todos os níveis da administração pública, em cascata, desde os
mais altos escalões até o guarda de trânsito. Até nós mesmos, sociedade civil. Outro
dia, fui atravessar a rua quando o sinal estava fechado para os pedestres e tomei
uma bronca do meu filho. Fiquei envergonhado. A solução começa nestes pequenos
gestos, na advertência de alguém que ainda não foi contaminado com a lógica da
Lei de Gérson, de levar vantagem em tudo, com a tomada de consciência de que o
espaço público não é de ninguém porque é de todos e, por ser de todos, deve ser
preservado, cuidado por quem dele se utiliza.
Minha carteira de motorista está vencida, vou ter de
estudar mais para renová-la ou vou levar mais uma bronca do Miguel.
Comentários
Como diria a canção "Quizás, Quizás, Quizás", escrita há quase 70 anos, "Hasta cuándo? Hasta cuándo?"