Ontem, assisti à final da Eurocopa entre França e
Portugal na casa de um casal de amigos franceses, cujos filhos estudam na mesma
escola que Miguel. Dizem que a Eurocopa é uma Copa do Mundo de futebol sem
Brasil e Argentina, tamanha a qualidade das seleções envolvidas. Há
controvérsias, não tanto pelas seleções europeias, mas pela inclusão do Brasil...
A França era favorita por jogar em seu território, o Stade de France, em Paris,
de péssima lembrança para os brasileiros, pois foi ali que a seleção canarinho
levou um baile na final de 1998, e por exibir campanha melhor do que a da
seleção portuguesa. Os portugueses chegaram aos trancos e barrancos à
finalíssima: empataram os três jogos da primeira fase, contra Islândia, Áustria
e Hungria; vitória de um a zero, com gol na prorrogação, contra a Croácia nas
oitavas-de-final; vitória, nos pênaltis, contra a Polônia nas quartas-de-final,
após empate em um a um no tempo regulamentar; vitória de dois a zero contra a
surpreendente seleção do País de Gales, nas semifinais.
A bandeira tricolor pendurada na parede, ao lado da
televisão, não adiantou muito. Depois de noventa minutos de um jogo razoável,
sem muitas chances para os dois lados, a seleção francesa impondo mais seu
ritmo a uma seleção portuguesa abalada com a saída precoce de Cristiano
Ronaldo, lesionado logo nos primeiros minutos da primeira etapa, veio a
prorrogação. E na prorrogação, com as duas seleções já exaustas, surge a figura
de Éder, que saiu do banco de reservas português para o estrelato. Dominou a
bola pela meia esquerda já na intermediária inimiga, levou um pouco mais para o
meio e mandou um petardo no canto direito do goleiro francês LLoris, que nada
pôde fazer. Portugal, campeão da Eurocopa 2016. Restou a nós (torci pela
França) tomar uma boa cachaça mineira e jogar umas partidas de futebol de mesa.
Éderzito António Macedo Lopes, mais conhecido como Éder,
é um negro retinto, imponente, alto, bonito. Nasceu em Guiné-Bissau, território
integrante do Império Português até 1973, ano em que proclamou sua
independência. Foi a primeira colônia portuguesa a ter a independência reconhecida
por Portugal. Emigrado no início da década de 1990, foi deixado pela família
num orfanato de Coimbra aos três anos de idade, onde começou a dar os primeiros
chutes. Dentre os titulares da seleção portuguesa que disputou a final da
Eurocopa, havia quatro negros, três deles nascidos em solo português embora de
ascendência africana: um de Angola; um de São Tomé e Príncipe; outro de Cabo Verde.
O quarto negro é angolano.
Na seleção francesa vice-campeã continental, o mesmo “fenômeno”
de ex-colônias representando as cores da ex-metrópole. Dos onze jogadores
titulares que começaram a partida de ontem, seis eram negros nascidos na França
embora descendentes de africanos ou nasceram em países africanos, ou seja, mais
da metade da equipe. Diferente dos portugueses, no caso dos franceses o próprio
nome dos jogadores “denúncia” o desvio da rota imaginada pelos defensores ultranacionalistas
da pureza racial e cultural do berço do Iluminismo. Samuel Umtiti nasceu em
Camarões; Patrice Evra nasceu no Senegal; Bacary Sagna é francês e descende de
senegaleses; Paul Pogba é francês e descende de guineenses e congoleses; Blaise
Matuidi é francês e descende de angolanos; Moussa Sissoko é francês e descende
de malineses.
Hitler, aliás, se revira no túmulo porque constata, ao
olhar para a seleção alemã, que nada menos do que sete dos vinte e três
jogadores convocados para a Eurocopa 2016 têm ascendência “não ariana” (sic),
dentre elas, turca, tunisiana, ganesa, espanhola, senegalesa e albanesa.
Numa Europa encharcada de imigrantes fugidos de
conflitos em vários países da África e do próprio continente europeu, em que a
extrema-direita e seu discurso xenófobo e racista ganha força, França e Portugal,
através do futebol, a pátria de chuteiras rodrigueana, questionam, ainda que
não intencionalmente, o fechamento de suas fronteiras geográficas e simbólicas em
nome de uma idealizada e irreal identidade nacional ancestral. Por outro lado, a
Inglaterra, que acaba de decidir pela construção de muros simbólicos, primeiro
passa para a construção de muros físicos, com a decisão de abandonar, depois de
referendo, a União Europeia, teve desempenho pífio na competição europeia,
sendo eliminada pelos vikings da Islândia, país que, reza a lenda, tem mais
vulcões que jogadores de futebol.
Coincidência? Claro que sim, mas quero imaginar que
não. O futebol explicando a sociedade, a sociedade se espelhando no futebol. Ganhar
a “orelhuda” (como é conhecido o troféu dado ao campeão europeu) foi um
detalhe.
Comentários
Em tempo: torci (será??!!) por Portugal.