Na
semana passada, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a proibição
de tatuagens a candidatos a cargo público estabelecida em leis e edital de
concurso público, como consequência de um recurso impetrado por um candidato a
soldado da Polícia Militar de São Paulo eliminado por ter tatuagem na perna. O
relator do recurso, o ministro Luiz Fux, observou que a criação de barreiras
arbitrárias para impedir o acesso de candidatos a cargos públicos fere os
princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade, destacando que a
tatuagem, por si só, não pode ser confundida como uma transgressão ou conduta
atentatória aos “bons costumes”. Em seu entendimento, o desejo de se expressar
por meio de pigmentação definitiva não pode ser obstáculo a que um cidadão
exerça cargo público, ou seja, “um policial não se torna melhor ou pior em suas
funções apenas por ter tatuagem”. O Estado não pode, para Fux, querer
representar o papel de adversário da liberdade de expressão, impedindo que
candidatos em concurso ostentem tatuagens ou marcas corporais que demonstrem
simpatia por ideais que não sejam ofensivos aos preceitos e valores protegidos
pela Constituição Federal, sendo de sua responsabilidade preservar a máxima de
que “cada um é feliz à sua maneira”.
Logo
de partida, devo expressar meu assombro pela presença, no edital da Polícia
Militar de São Paulo, de um pré-requisito que, além de arbitrário, é
anacrônico, preconceituoso, estereotípico, reprodutor de estigmas. Parte-se do
pressuposto de que o indivíduo possuidor voluntário de marcas definitivas na
pele é um marginal da lei, um subversivo, indigno de assumir um posto da
administração pública, representante do Estado, porque semeador do caos e da
discórdia. Se não fosse a tatuagem, poderia ser a proibição de homens com
cabelos compridos (lembro que, anos atrás, um ex-técnico da seleção argentina
de futebol deixou de convocar jogadores com rabo de cavalo) ou com a barba por
fazer, para muita gente considerados sinais de pouco asseio, transgressão às
normas estabelecidas a cada um dos gêneros. Ou ainda, o que dizer da
circuncisão, marca indelével, não necessariamente símbolo de estigma, mas
podendo ser, caso assim seja definido por quem elabora o processo seletivo?
Olho
para o meu corpo e descubro que, em São Paulo, também não poderia correr atrás
de assaltantes. Ou, recorreria ao STF. Tenho três tatuagens: uma no pulso
direito, os contornos de um gatinho, em homenagem aos três gatos que temos em
casa; os contornos do Pão de Açúcar, no antebraço direito, em homenagem à
paisagem que considero a mais bonita de uma cidade tão mal tratada; na parte
exterior da panturrilha esquerda, os contornos de um personagem sarcástico e
politicamente incorreto de um seriado de TV norte-americano, com o qual me identifico
pura e simplesmente. Sem falar na circuncisão que, talvez por descuido, tenha
sido esquecida pelos “çabios” (salve, Gaspari!) burocratas paulistas. Se a
mesma perspicácia quadrúpede fosse usada à época de minha entrada no Ministério
da Cultura, de nada valeria meu conhecimento adquirido ao longo dos anos de
formação acadêmica e pronto para ser aplicado ao campo das artes, tal
conhecimento estando socialmente legitimado por diplomas de mestrado e
doutorado e, muito menos, teria a possibilidade de especializar-me, já como
funcionário do Estado brasileiro, na área das políticas públicas de cultura.
Diz-se
que “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. A questão
que devemos colocar, portanto, é: como aparentar honestidade, ou melhor, como aparentar
eficiência, um dos princípios que impõe à administração pública e a seus agentes a
persecução do bem comum, “por meio do exercício de suas competências de forma
imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz”?
No verão escaldante do Rio de Janeiro, servidores públicos
do estado podem ir trabalhar de bermudas. Em 2016, o Tribunal de Justiça fluminense
liberou os advogados do uso de terno e gravata nas suas dependências, inclusive
em audiências e na segunda instância. O funcionário do DETRAN ou o servidor do
judiciário não será, a princípio, menos eficiente em seus deveres com a
alteração temporária do código de vestimenta, pelo contrário, uma vez atenuada a
sensação de desconforto com o calor, a tendência é que a produtividade aumente.
Por outro lado, devemos lembrar que o uso de terno e gravata não garante,
inexoravelmente, a idoneidade do indivíduo, se assim fosse, não haveria o
famoso “crime do colarinho branco”, afinal, aquilo que entendemos por “boa
aparência” é questão subjetiva de difícil mensuração, embora perfeitamente
conciliável se, conforme lembrado pelo ministro Luiz Fux, se imperar a busca
pela razoabilidade e eficiência.
Caso contrário, proponho um pré-requisito para o próximo
edital da Polícia Militar do Estado de São Paulo: fazer o “4” depois de tomar quatro
caipirinhas.
Quem aí passaria?
Link da decisão do STF:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=323174
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