Dando nome aos bois

Breves parênteses.

Sou crítico do processo de racialização que tomou conta da sociedade brasileira nos últimos anos como forma de afirmação cultural. Entendo e defendo políticas públicas que protejam e promovam grupos sociais e culturais historicamente marginalizados, no entanto, a forma como tem sido feita, especificamente em relação à herança africana, reforça, antes que ajuda a diminuir, estereótipos. Não cabe, aqui, a exposição dos argumentos que tenho para justificar meu posicionamento, tampouco os argumentos dos que me criticam, pois não é meu propósito discorrer novamente sobre o assunto. Uns e outro (eu) devem respeitar-se, o que, de forma geral, acontece. O debate sobre a utilização do conceito de raça é válido e mais do que legítimo. Minhas contribuições, aos que tiverem interesse em conhecê-las, estão disponíveis nos links ao final deste pequeno texto.

Seguindo.

Ser contra a racialização não significa ignorar o racismo que ainda impera na sociedade brasileira. Tenho plena consciência de que, numa blitz policial, se acompanhado de um amigo negro, o suspeito, a princípio, será ele e não eu, de pele e olhos claros. Pior ainda se for mulher, dado que o brasileiro se comporta, ainda, embora menos do que em décadas passadas (o processo é lento...), como um homem das cavernas que arrasta a mulher puxando-a pelos cabelos. A puxada de cabelo foi substituída pelo assédio sexual nos vagões dos trens e metrôs, pelos assobios e “gracinhas” grosseiras dos peões de obra e porteiros, dos apologistas da cultura do estupro que acham que a mulher pediu pra ser violentada, afinal, quem manda andar de minissaia. Misoginia e racismo, uma mistura que, corriqueiramente, perpetua a miséria e o estigma.  

Aos fatos, pois.

Há poucos dias, o prefeito falastrão do Rio de Janeiro e que, tal qual o vilão de Harry Potter, não pode ser nomeado, ao entregar as chaves a uma moradora contemplada com um apartamento da prefeitura, fez uma série de comentários de, no mínimo, péssimo gosto. Em vídeo amplamente divulgado nas redes sociais, o parente de Voldemort (pronto, falei) diz que Rita, a felizarda nova dona da casa própria, “vai trepar muito nesse quartinho”, que “vai trazer muitos namorados pra cá” e aconselha, finalmente, como um terapeuta sexual de botequim, a fazer muito sexo no novo lar, doce lar. Para os vizinhos, o alcaide grita que “ela vai fazer muito ‘canguru perneta’ aqui, tá liberado”.   

Observação curiosa: o baixo nível das declarações do Voldemort tupiniquim é confirmado, inclusive, pelo Microsoft Word. A palavra “trepar” é sublinhada, como tivesse sido digitada erroneamente ou não existisse, sugerindo-se a expressão “ter relações sexuais”.

Estaríamos diante da tríade PPP - preto, pobre e puta? Se for pobre, é preto; se for preto (no caso, preta), é puta. Rita, preta devassa, reproduz o papel social esperado das empregadas domésticas que, muito rotineiramente, iniciavam (iniciam?) nos prazeres do sexo os filhos da classe média carioca? Versão moderna da escrava da Casa Grande? Levadas pelo instinto animalesco, mais que pelo espírito civilizatório?

Mais do que de baixo nível, as declarações do prefeito carioca, cujo candidato a sucessor patina nas pesquisas de opinião e ostenta nada menos do que 61% de rejeição dos eleitores quando estes descobrem de quem é apadrinhado politicamente, chamam a atenção pelo contexto e personagens envolvidos. Se estivesse num botequim, rodeado de amigos e amigas, por que não, contando vantagens sobre o desempenho na alcova, como nas estórias de pescador, os termos empregados estariam perfeitamente adequados. No entanto, no exercício da função pública o comportamento deve ser regido pelo decoro e respeito àqueles de quem foi confiada a autoridade, os cidadãos, termo genérico. O que não ocorreu. O comportamento indecoroso do prefeito carioca estabelece uma hierarquia cidadã. Ou alguém imagina que as palavras dirigidas à Rita seriam dirigidas, por exemplo, a mim?

Machismo, racismo, preconceito de classe.


Ou não? 

Link da ilustração:

http://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/mostra-de-millor-reune-desenhos-que-parecem-feitos-para-momento-atual-19086479

Link dos textos:

https://desconstruindomarcelo.blogspot.com.br/2012/05/tentativas-de-racializacao-das.html

https://desconstruindomarcelo.blogspot.com.br/2012/01/racismo-sem-raca-falacia-do.html

https://desconstruindomarcelo.blogspot.com.br/2013/06/a-favor-do-arco-iris.html

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