A igreja católica não é boba. O desastre
mercadológico - sim, porque o aumento do rebanho depende de um marketing
ideológico adaptado à sociedade de consumo, sendo a religião apenas mais um dos
produtos disponíveis nas prateleiras do supermercado cultural – do pontificado
de Bento XVI, aquele velho ranzinza que teimava em falar em latim e tinha,
sobre si, o fantasma da Juventude Hitlerista lhe assombrando, fez a cúpula do
Vaticano rever as formas de cooptação dos incautos. Diante da perda gigantesca
de fiéis na América Latina para as igrejas evangélicas e sua teologia da
prosperidade e do fracasso da Renovação Carismática Católica na aproximação do
público-alvo, desconectada de suas necessidades, a escolha do substituto de
Bento XVI recaiu sobre um senhorzinho com carinha bonachona, de fala mansa, um
fofo. E argentino. A piada se inverteu: deus pode ser brasileiro, mas o papa é
argentino...
O papa é pop e gosta de futebol. Mais povo do que
isso, impossível. Seu trabalho pastoral nos “barrios” portenhos, de chão de
terra batida, veio acompanhado de sua paixão futebolística pelo San Lorenzo de
Almagro, time que disputa a primeira divisão do campeonato argentino. Diz-se
que, por intervenção divina incorporada no pontífice, o San Lorenzo conseguiu
sagrar-se campeão da Copa Libertadores da América de 2014, a mais importante
competição futebolística do continente americano. Como retribuição, o time
inteiro prestou-lhe homenagem em visita oficial ao Vaticano, quando Francisco
recebeu uma camisa autografada pelos jogadores. Eu mesmo entrei no clima e
trouxe para o Miguel uma camisa extra-oficial do San Lorenzo, “o time do papa”.
Mas, quem vê cara não vê coração.
Em reunião a portas fechadas com bispos poloneses,
em sua recente visita ao país, o papa criticou as escolas que ensinam a
liberdade de gênero aos alunos, classificando este ensino de “colonização
ideológica” e considerando “terrível” que as crianças possam escolher sua
identidade de gênero. Aliás, a “colonização ideológica” foi comparada à máquina
de propaganda nazista, igualando-se os defensores da causa LGBT a Goebbels.
Sutil, não?
O papa pop acredita que a “ideologia de gênero” é
um “passo atrás”, parte do problema e não da solução, causa do aumento no
número de divórcios. A diferença sexual (biológica?) entre homens e mulheres é
necessária para a comunhão “à imagem e semelhança de deus”. Francisco lembrou,
ora vejam só, que já havia discutido sobre o assunto com o então papa Bento
XVI:
"Conversando com
o Papa Bento, que está bem e com a mente clara, ele me disse: 'Santidade, isso
é a época do pecado contra Deus, O Criador, ele é inteligente! Deus fez o homem
e a mulher, Deus fez o mundo deste jeito, deste jeito, deste jeito e nós
estamos fazendo o contrário’".
Os primeiros comentários de Francisco sobre o tema
da diversidade sexual e de gênero foram feitos em uma entrevista de outubro de
2014, publicada posteriormente no livro Papa Francesco: questa economia uccide
(‘Papa Francisco: esta economia mata’), em que fala dos “Herodes” modernos que
“destroem, que tramam projetos de morte, que desfiguram a face do homem e da
mulher, destruindo a criação.” Ao dar exemplos, ele disse:
“Pensemos nas armas nucleares, na possibilidade de
aniquilar em alguns instantes um número muito elevado de seres humanos.
Pensemos também na manipulação genética, na manipulação da vida, ou na
ideologia de gênero, que não reconhece a ordem da criação. (...) Com essa
atitude, o homem comete um novo pecado, aquele pecado contra Deus Criador… Deus
colocou o homem e a mulher no topo da criação e confiou a eles a terra… O
projeto do Criador está escrito na natureza.”
Juntar os trapos com alguém que tem o mesmo órgão
sexual, se seguirmos a linha de raciocínio desenvolvida no comentário acima, é
crime tão grave quanto aquele cometido pelos americanos ao lançarem bombas
atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.
A expressão “colonização ideológica” é uma bobagem.
Aliás, a igreja católica deveria olhar para o próprio umbigo quando fala de
colonização, vide o genocídio perpetrado em nome da fé católica ao longo dos
últimos séculos, nos quatro cantos do mundo, especialmente no continente de
onde vem Francisco. Pergunte aos remanescentes das tribos indígenas que vivem
nas províncias mais pobres da Argentina, em Chaco, por exemplo, o que aconteceu
com seus antepassados. Ao menos tinham a opção da conversão porque tinham alma,
mais sorte do que a dispensada aos africanos, desalmados e, portanto,
irrecuperáveis.
No fundo, tudo é ideológico, porque, em sentido
amplo, ideologia é, simplesmente, a interpretação simbólica que damos à
realidade que nos circunda. Assim, a crença em deus e em jesus cristo é
ideológica. A crença em Adão e Eva é ideológica. A crença no pecado original é
ideológica. A crença na “ordem da criação” é ideológica. A crença na felicidade
matrimonial independente do órgão sexual dos noivos (ou noivas) é ideológica.
Aliás, as tais das “referências paternas e maternas” não estão atreladas ao
sexo do “pai”ou da “mãe”, sendo a transmissão de valores independente da posse
do pênis e da vagina. Pensamos com a cabeça de cima, não a de baixo.
É mais fácil lutar contra o inimigo que se mostra
inimigo. Que te xinga, te agride, te despreza explicitamente. Que deseja, até,
sua morte. Sabemos contra quem e contra o quê precisamos nos defender.
É mais fácil lutar contra o discurso medieval
homofóbico e misógino de pastores evangélicos e do lobby da batina do que contra
figuras que, sob a capa do amor e da fraternidade, lobos em pele de cordeiro, destilam
o fel que contamina, a conta gotas, quem ainda não sucumbiu às trevas da
intolerância.
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