Camisa 10

Tão famosos quanto os gols de Pelé são seus quase-gols ou, na linguagem de hoje, “gol, só que não”. Na Copa de 1970, o que não faltou foi este coito interrompido. Quem não se lembra da defesa de Gordon Banks ou do strike que o rei do futebol fez na defesa uruguaia após driblar Mazurkiewicz, o goleiro da celeste olímpica, e ver a bola lamber o poste direito, saindo caprichosamente pela linha de fundo? No entanto, para mim, o lance mais sensacional de Pelé na campanha do tricampeonato aconteceu contra a Tchecoslováquia, na estreia da seleção brasileira em terra asteca. O resultado final, de quatro a um, foi um detalhe que coroou uma atuação de gala.

A bola sobra perto do meio de campo, ainda na metade brasileira, após desarme do atacante tcheco. Pelé, ao ver o goleiro adversário um pouco adiantado, resolve testá-lo. Chuta a bola, ainda em movimento, em direção ao arco. A redonda viaja a mais de cem quilômetros por hora numa parábola. O goleiro tcheco, desesperado, na iminência de tomar um gol do “meio da rua”, corre pateticamente de volta à meta e vê, incrédulo, a bola triscar a baliza esquerda e salvá-lo de entrar para a história de modo não muito honrado. Alguém se lembra de seu nome? Mesma sorte não teve o Andrada...
Nelson Rodrigues dedicou uma crônica a este lance genial, publicado no dia seis de junho de 1970 n’O Globo:

“l x l ainda no marcador. Recomeça a partida e Pelé estava ainda no campo brasileiro. Apanha a bola. E, súbito, recebe a visita do próprio gênio. Viu que o goleiro tcheco estava fora de posição, muito adiantado. Fez, então, o que não ocorreria a ninguém. De onde estava, deu um prodigioso tiro de cobertura. A TV, que não sabe fantasiar e tem o escrúpulo da mais exata veracidade, descreveu-nos o lance. A câmera, numa tomada por trás do gol, mostra toda a curva implacável da bola. Por um momento, ninguém entendeu. Por que Pelé não passou? Por que atirava de tão espantosa distância? E o goleiro custou a perceber que era ele a vítima. Seu horror teve qualquer coisa de cômico. Pôs-se a correr, em pânico. De vez em quando, parava e olhava. Lá vinha a bola. Parecia uma cena d’Os três patetas. E, por um fio, não entra o mais fantástico gol de todas as Copas passadas, presentes e futuras. Os tchecos parados, os brasileiros parados, os mexicanos parados — viram a bola tirar o maior fino da trave. Foi um cínico e deslavado milagre não ter se consumado esse gol tão merecido. Aquele foi, sim, um momento de eternidade do futebol. Pelé nunca foi tão alto no seu gênio. Mas por que fez isso? Simplesmente, ali o Rei se vingava das nossas vaias. E não só ele: — também o escrete, todo o escrete. Bem sei que as hienas da crônica ainda uivam contra a defesa”

Tapa com luva de pelica. E comemorava os gols dando socos no ar, a felicidade pura, não tinha que provar nada para ninguém. Nada de dedos indicadores levantados aos céus agradecendo a deus, que tem mais o que fazer do que agraciar um time ou outro, um atacante ou outro, com o êxtase da rede estufada.

Corta para 2016.

Na última terça-feira, o Brasil enfrentou a Colômbia pelas eliminatórias sul-americanas para a Copa do Mundo de 2018, a ser realizada na democrática Rússia de Vladimir Putin. No placar, um a um, torcida impaciente, algumas vaias talvez (sei lá, só vi os gols, não via a partida). Neymar recebe a bola dentro da grande área e a coloca no canto esquerdo do goleiro, selando a vitória da seleção brasileira e alçando-a à vice-liderança, atrás somente do Uruguai. Socos no ar? Sorriso? Abraços? Não. Xingamentos, arrogância, prepotência, raiva. As câmeras captaram perfeitamente as palavras proferidas pelo jogador do Barcelona, “eu sou foda, eu sou foda, eu sou foda!”. Bem, quem é “foda” mesmo não precisa dizê-lo a três por quatro, está seguro de que é e pronto.

O destempero do atual camisa 10 da seleção brasileira não é novidade, não foi a primeira e nem será a última vez que o veremos. Durante a Copa América, disputada há alguns meses nos Estados Unidos, chamou de “babacas” os críticos do então técnico Dunga e dos jogadores que faziam exibições sofríveis. Rivelino, outro monstro da Copa de 1970 (a comemoração dele após o segundo gol contra o Uruguai, na semifinal, é impagável, procurem no Youtube), respondeu à altura.

“Acho que o maior babaca da história é ele. Ele que é o babaca. Tem que construir uma história dentro de uma seleção brasileira pra falar. Até agora não ganhou nada, não deu nenhuma alegria pro povo, então menos. Primeiro constrói a sua história, tenta dar um título para o povo brasileiro e depois aí pode reclamar um pouco''.  

E, após ganhar a medalha de ouro olímpica, na final contra a Alemanha, Neymar foi discutir com torcedores que aparentemente o xingavam durante a partida, mandando-os, dentre outras coisas, “tomar no cú”. Bem, o papel do torcedor e aplaudir, vaiar e xingar, torcedor vaia até minuto de silêncio, como um dia escreveu o Anjo Pornográfico. Por sua vez, o papel do jogador não é, definitivamente, bater boca com o torcedor, muito menos usando uma fita na cabeça onde se lê “100% Jesus”...

Neymar representa uma geração de jogadores arrogantes, mimados, hipócritas, cínicos, cercados de papagaios de pirata e bajuladores, inclusive no meio da crônica esportiva, que abdica do senso crítico para, quem sabe, ganhar uma alguma migalha dos milhões de dólares nem sempre devidamente declarados no imposto de renda (vide o caso de Messi). É incapaz de assumir qualquer tipo de deficiência, é incapaz de elaborar um discurso que saia do senso comum, das frases feitas, das mesmas palavras, dos mesmos verbos, da mesma verborragia tipo horóscopo, o mais do mesmo mudando apenas a ordem das palavras dia após dia, coletiva de imprensa após coletiva de imprensa. Criatura saída do discurso ufanista e babaca (esse sim, babaca) de locutores e comentaristas esportivos que, em nome da afirmação nacional, creem que o complexo de vira-latas desaparecerá com o hexacampeonato mundial, provando ao mundo que ”sim, nós podemos”. E que ganham, também, milhões com esta ilusão.

Neymar te representa?

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