Diário da Guerra, parte 2.

Nasci com o bumbum virado para a lua. Não, não nasci em berço de ouro, mas vou caminhando lépido e fagueiro para o meu trabalho, na Lapa, num trajeto de cerca de três quilômetros e meio da minha residência, no Flamengo. Enquanto boa parte da população carioca perde horas e mais horas do dia no trânsito, elevando os níveis de estresse e mau-humor, desperdiçando momentos preciosos com a família e os amigos, jogando na lata de lixo a qualidade de vida, levo meia hora de um ponto ao outro. E sem acelerar muito o passo.

Ontem, como faço todos os dias, voltava do trabalho por volta das seis e quinze da tarde. Na Rua da Lapa, em direção à Rua da Glória, o comércio funcionava normalmente, bares, pastelarias, pet shops, lojas de ferragem e material elétrico, vidraçarias, farmácias, brechós. Mas havia algo de estranho no ar. A partir da esquina da Rua Cândido Mendes e por longos metros à frente, tudo fechado. Supermercados, restaurantes, loja de tintas, hortifrúti, lojas de móveis, bares, padaria, lanchonetes, casas lotéricas, concessionárias de motos. Pouca gente circulando nas calçadas. Uma guarnição da polícia estava parada na esquina da Rua da Glória e Benjamin Constant. A delegacia de polícia é logo ali. Acelero o passo, não entro na Rua Bento Lisboa, como costumeiramente faço, prefiro seguir pela Rua do Catete. Como num passe de mágica, a cidade voltava à normalidade, comércio aberto, como se nada de anormal estivesse acontecendo.

Era feriado naquela parte do bairro onde as portas estavam baixadas?

Não, senhores.

Era o toque de recolher imposto pelo tráfico de drogas do morro Santo Amaro, no bairro do Catete, após a morte do traficante conhecido como Fat Family, aquele mesmo resgatado de dentro do Hospital Souza Aguiar, no centro da cidade do Rio de Janeiro, numa ação espetacular com direito a lançamento de granadas e tiroteio, pouco antes dos jogos olímpicos que tanto elevou a autoestima do povo e engordou os cofres das empreiteiras.

Este modus operandi não é novidade nas favelas espalhadas pela cidade olímpica, zona norte, zona oeste, zona sul, pouco importa. Milhares de cidadãos vilipendiados no seu direito de ir e vir sofrem com a atuação do Estado paralelo representado pelo tráfico de drogas e pelas milícias. De nada adianta o carro da polícia parado na esquina, o comerciante que mora na favela vai, no final do expediente voltar para a terra de Marlboro, e lá a polícia não entra. É morte na certa, cumpadi. Eu fecharia as portas.

Hoje, a padaria estava aberta, tudo como dantes no quartel de Abrantes. Tal como aconteceu na parte 1 deste Diário da Guerra, é impressionante como a população carioca se adapta camaleonicamente e se resigna inevitavelmente ao destino que parece ser inescapável. Mais dia, menos dia, seremos assaltados, baleados, obrigados a fechar nosso comércio ou procurar abrigo no meio do tiroteio entre polícia e bandido.


Tá tranquilo, tá favorável?

Parte 1:
https://desconstruindomarcelo.blogspot.com.br/2016/07/diario-da-guerra.html

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