Poderíamos aprender uma ou outra coisa dos argentinos,
esses arrogantes espalhafatosos que invadem Florianópolis e Búzios todos os
verões, muitos deles se achando no direito de ficar por estas bandas, compram
casa, abrem restaurantes, roubam nossas mulheres.
Uma coisa:
A pizza, por exemplo, a melhor do mundo, de massa
grossa, encharcada de mozzarella da melhor qualidade e tomates divinos, a minha
preferida com generosas tiras de pimentão vermelho e cebola, nada mais, nada
menos, pizza de sushi é coisa de herege gastronômico. A quem interessar, a melhor
pizzaria de Buenos Aires é a El Cuartito, com suas paredes decoradas por
gravuras, flâmulas de clubes de futebol e fotos de ídolos do esporte, dentre
eles, obviamente, Dom Diego “Mano de Dios” Maradona. Pule de dez, como diziam
os antigos. A Guerrin e a Las Cuartetas não fazem feio, mas a primeira se “turistizou”
muito e a segunda tem a mozzarella levemente mais salgada do que meu paladar
aprecia.
Ou outra:
A condenação, pela justiça civil, por crimes de
lesa-humanidade, dos militares genocidas que instauraram o Estado terrorista em
1976, que sequestraram bebês e entregaram a cúmplices e simpatizantes, que
torturam e mataram cerca de trinta mil cidadãos argentinos, que inventaram a
figura do “desaparecido”, aquele que “não está” (expressão usada por Jorge
Videla numa entrevista coletiva em 1979), que existe, mas não existe, que
implantaram os voos da morte, jogando ao mar prisioneiros políticos no Rio de
la Plata. O último deles a ser condenado a prisão perpétua foi Luciano
Menendez, atualmente com 89 anos, ex-chefe do Terceiro Corpo do Exército
Argentino e responsável por centros clandestinos de detenção na província de
Córdoba. O general Jorge Videla, hipoteticamente o equivalente portenho de Emílio
Garrastazu Médici no Brasil, por sua natureza truculenta e sádica, com aquela
carinha de vovô fofinho, morto em 2013 aos 83 anos, também ganhou prisão
perpétua.
“Hay que tener cojones” para enfrentar a máquina de
guerra do Estado. Em 30 de abril de 1977, um grupo de corajosas mães começou a
rondar a Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, pedindo a liberdade de seus
filhos desaparecidos por obra da ditadura feroz que caminhava a passos largos.
Iniciava-se a linda história das Madres de Plaza de Mayo. O símbolo do grupo é
o lenço branco na cabeça com o nome do filho bordado. Desde então, as rondas
são realizadas todas as quintas-feiras, faça chuva, faça sol. Uma de suas fundadoras
é Hebe Pastor de Bonafini, a quem se deve reconhecer a luta pelos direitos
humanos na Argentina, sua luta incansável por levar ao banco dos réus os
algozes de toda uma geração.
Dito isto, ponto e parágrafo.
Nossa biografia é um contínuo narrativo, nossa
identidade (ou melhor, identidades) está em permanente construção. Aquilo que
fomos não é, necessariamente, aquilo que somos, e aquilo que somos não é, por
consequência, necessariamente aquilo que seremos. “Quem te viu, quem te vê...”.
Nada de contraditório nisso. Apenas humano.
É o que se passa com Hebe.
Em 2001, quando desabaram as Torres Gêmeas, o rosto
mais conhecido das Madres disparou:
Estava com
minha filha em Cuba e fiquei muito feliz quando escutei a notícia. Não serei
hipócrita: não me doeu o atentado.
Neste mesmo ano de 2001, verteu a bílis antissemita
sobre o jornalista argentino Horácio Verbitsky, atavismo ideológico que os
genocidas militares, combatidos por Hebe, usavam para acrescentar crueldade nos
presos políticos judeus:
É um servo
dos Estados Unidos. Além de ser judeu, é totalmente pro-EUA.
Hoje, a fundação Madres de Plaza de Mayo enfrenta uma
causa judicial por suposto desvio de fundos do programa Sonhos Compartilhados,
um plano para construção de casas populares com recursos do governo federal,
entre os anos de 2008 e 2011. Hebe de Bonafini recusou-se, por duas vezes, a se
apresentar perante o juiz. Não estava sendo presa, estava sendo convocada para
dar declarações. Diante da dupla recusa, foi emitida ordem para seu traslado à
força. Imediatamente, simpatizantes e políticos cerraram fileiras à frente da
fundação, impedindo o cumprimento da ordem, em aberto desafio ao poder
judiciário. Repita-se: a convocatória inicial era para a prestação de
depoimento, apenas isso.
Em seguida, o grupo rumou, como faz há quatro décadas,
todas as quintas-feiras, para a Plaza de Mayo, de onde Bonafini fez a seguinte
declaração, em alto e bom som, pelo microfone:
Macri, pará la mano. Yo sé que esta noche
no vas a poder dormir. Te van a llenar la cabeza de que te vamos a sacar. Te
vas a caer solo, hijo de puta.
Hebe
de Bonafini não acredita na justiça argentina. Ou será que não acredita na
justiça argentina independente, livre da influência política do poder executivo?
Há cidadãos sobre os quais a mão dura da lei não consegue chegar? Que mensagem
a cidadã Bonafini passa a seus concidadãos argentinos sobre o respeito (ou
desrespeito) ao Estado de direito? Aos amigos tudo, aos inimigos a lei? Garante-se
a impunidade/imunidade a quem quer que resolva chamar o presidente da república
de “filho da puta”, de tê-lo comparado, como ela fez, a Adolf Hitler? Nenhum
reproche? Nenhuma crítica? Cegueira ideológica?
Nas
palavras do jornalista argentino Alfredo Leuco:
“Yo entiendo que tuvo que sufrir el
más terrible dolor al que puede someterse a un ser humano: la desaparición de
sus hijos. Soy consciente de que muchos, por mucho menos, enloquecerían. Pero
la tragedia no puede ser un certificado de impunidad ni de inmunidad. El
desgarro no da fueros. La impunidad es como la muerte. No hay ninguna buena. De
aquella lucha contra los asesinos de ayer, a la intolerancia y el dogmatismo
blindado de hoy”.
Hebe
de Bonafini não reconhece um governo eleito democraticamente por metade do eleitorado.
Goste ou não de sua orientação ideológica. No Brasil, ela seria golpista.
E
na Argentina?
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