Por que não te calas, Netanyahu?

Às vezes, aos sábados pela manhã, quando frequentamos a pracinha em frente de casa, aparece uma bela jovem de pele bem clarinha, de vestido longo até os calcanhares, acompanhada de seus três filhos, um deles ainda bebê de carrinho. Formam uma “escadinha”, a diferença de idade entre eles deve ser de um ou dois anos. Sua função é a de parideira. Não parece infeliz. Cumpre seu papel social, comporta-se de acordo com o lugar que lhe é destinado no grupo, o desvio e a divergência ao que dela se espera a transformaria numa pária social. Seus cabelos, reparando bem, não se movem nem com a ventania. Usa peruca. Os cabelos são fonte de sensualidade, que deve ser reprimida. A filha mais velha se veste como a mãe. Ficam pouco tempo e já se vão.

A identidade judaica é plural. Num área de poucos metros quadrados, um judeu ateu e uma judia ortodoxa, que não se conhecem, que, possivelmente, nunca vão trocar dois dedos de prosa, que tem ideias completamente distintas sobre o que é ser judeu, que são física e “indumentariamente” distintos, compartilham pacificamente o espaço público. Se me conhecesse, talvez me desprezasse, me consideraria um judeu não judeu, um judeu que odeia sua condição judaica, um judeu desgarrado do caminho. Que casou com uma “goy”. Talvez eu a despreze por deixar-se oprimir, ainda que não se considere oprimida, abafar a beleza de sua identidade feminina. De toda forma, as fronteiras da identidade étnica são móveis, não se reduzem a aspectos religiosos e muito menos à ideia de nação.

Em Israel, por outro lado, Estado, nação e religião se misturam cada vez mais. A coalização que sustenta o atual governo é formada por gente muito mais radical e fundamentalista que a jovem de pele clara que frequenta a pracinha perto de casa. É um pessoal que acredita na Grande Israel e que se arroga o direito de invadir territórios alheios e que, a qualquer sinal de questionamento, aponta o dedo e acusa os detratores de antissemitismo, uma espécie de salvo-conduto para oprimir quem insiste em viver nas terras destinadas ao Povo Escolhido. O David de ontem é o Golias de hoje, fortalecido com a módica quantia de US$ 5 bilhões nos próximos dez anos, a partir de 2019, através de acordo militar com os Estados Unidos.

Pergunta: o que você faria se tivesse sua casa invadida por saqueadores homicidas?

Eis que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, acusa as vítimas dos saqueadores, os palestinos dos territórios ilegalmente ocupados desde 1967, de “limpeza étnica”, de não quererem judeus morando num futuro Estado palestino independente. Em primeiro lugar, Netanyahu não informou de quem partiu a suposta declaração da varredura dos colonos judeus assentados em terras que não lhes pertencem nem de fato, nem de direito. Em segundo lugar, quem pretende realizar, e já está realizando, uma “limpeza étnica” é o governo israelense, genuflexo aos interesses de religiosos ultranacionalistas, que continua construindo casas e mais casas em Jerusalém Oriental e nos assentamentos da Cisjordânia.

O secretário-geral da ONU declarou que as afirmações de Netanyahu são um retrato “inaceitável e revoltante” das pessoas que se opõem à ocupação. Acrescentou que os “assentamentos são ilegais sob a lei internacional. A ocupação, sufocante e opressora, precisa terminar”.

Não são poucos os judeus que gostam de afirmar sua identidade, ou mesmo sua superioridade em relação aos gentios, vangloriando-se do proporcionalmente grande número de prêmios Nobel recebidos por representantes do grupo. Não sou um destes. Entendo, embora não concorde, com este tipo de comparação, porque é uma forma de afirmar-se perante uma sociedade hostil, uma manifestação de orgulho étnico tanto quanto as de orgulho gay ou afrodescendente. Eu não acho que judeus são melhores ou piores que outros grupos, apenas são, não precisam orgulhar-se ou envergonhar-se de ser quem são, porque também são muitas outras coisas. Inclusive estúpidos e preconceituosos, como o primeiro-ministro israelense. Vento que venta lá, venta cá.



É muita cara de pau transformar vítima em algoz. Vergonha alheia e um atentado à memória dos nossos antepassados que sofreram, eles sim, com a perseguição e o extermínio.

Acabem com a ocupação.


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