Santa do pau oco

Mesmo aqueles não familiarizados com o idioma de Cervantes (ou de Maradona) conseguirão compreender o trecho abaixo:
“Y hoy el más importante, el más grande destructor de la paz es el aborto. Y a los que estamos presentes aquí – nuestros padres nos quisieron. No estaríamos aquí si nuestros padres nos hubieran hecho eso a nosotros. A nuestros hijos, los queremos, los amamos, pero ay de millones de niños. Muchas personas están muy, muy preocupadas por los niños en India, por los niños en África, donde muchos mueren, tal vez de desnutrición, de hambre u otras cosas, pero millones están muriendo de forma deliberada por la voluntad de la madre. Y ese es el mayor destructor de la paz hoy. (...) Y también, hacemos otra cosa que es muy bonita, enseñamos a nuestros mendigos, nuestros enfermos de lepra, nuestros pobres, nuestra gente sin techo, lo que es la planificación natural de la familia. (...) Les enseñamos el método de la temperatura que es muy bonito y muy sencillo, y nuestros pobres lo entienden. ¿Saben ustedes lo que me han dicho? Nuestra familia está sana, nuestra familia está unida, y podemos tener un niño cuando queremos. Así de claro, esa gente en la calle, esos mendigos, y creo que si nuestros pobres lo pueden vivir así, cuánto más ustedes y todos aquellos que tienen capacidad de conocer los métodos y su sentido sin destruir la vida que Dios ha creado en nosotros” (grifos meus)
O excerto acima é parte do discurso que Anjezë Gonxhe Bojaxhiu, mais conhecida como Madre Teresa de Calcutá, proferiu ao receber o Prêmio Nobel da Paz em 1979. Ela acaba de ser canonizada pelo Papa Francisco, que decretou sua santidade e veneração por todo o rebanho. Parece que, em 2008, a mais nova santa dos católicos operou um milagre em um brasileiro (claro, deus é brasileiro), que tinha, à época, múltiplos pontos de inflamação no cérebro. A família do ex-desenganado rezou por Madre Teresa e, no dia marcado para a cirurgia, o felizardo acordou sem dores de cabeça e o médico considerou desnecessária a intervenção cirúrgica. 
Como funciona o sistema de seleção dos aptos a terem suas doenças curadas? Não é perverso este arbítrio dado a uma única pessoa, com poder de vida e morte? Seria uma competição? Quem mais reza, quem reza com mais fervor, consegue o milagre? Por que não contratar os serviços de santos e milagreiros? Os problemas do SUS estariam resolvidos.
Sua vida e obra está coalhada de “detalhes” controversos , como a acusação de “culto ao sofrimento” por não ministrar analgésicos aos moribundos e não manter o ambiente de acolhimento dos doentes num nível de asseio mínimo, apesar dos milhões de dólares recebidos pela organização Missionárias pela Caridade, da qual foi fundadora; da acusação de reutilização de seringas infectadas; de seu reconhecimento e legitimação de regimes ditatoriais como os de Baby Doc, no Haiti, e de Enver Hoxha, na sua Albânia natal; “fanática religiosa amiga de ditadores, ricos e corruptos”, nas palavras do médico indiano radicado em Londres, Aroup Chatterjee.
Você pode ser contra ou a favor do aborto, mas você não pode concordar com a afirmação de que o aborto é o maior destruidor da paz, então e agora. Talvez a santa devesse operar um milagre em si própria, curando-a de tal deformidade intelectual. O maior destruidor da paz é, sim, o fundamentalismo religioso, do qual Madre Teresa é a representante em sua vertente católica, acompanhada pelos pares do Estado Islâmico, de Louis Farrakhan, dos judeus ultranacionalistas assentados em terra alheia, do governo de Uganda que tenta passar uma vergonhosa Lei Anti-Homossexualidade, da bancada religiosa no congresso nacional brasileiro.
O mais assustador do discurso anti-aborto, no entanto, é o menosprezo pela fome, a desnutrição e a morte de milhões de pessoas, dentre as quais, um número gigantesco de crianças que poderiam ser salvas com medidas simples de higiene, medidas estas que, parece, não eram muito bem quistas pelas Missionárias da Caridade. Genocídios por fome e desnutrição são, portanto, fatos da vida a que devemos resignar-nos porque, fiquemos tranquilos, depois do sofrimento, vem a paz do senhor. Este é o tal “culto do sofrimento”. Ainda no discurso de Oslo:
“Una noche salimos y recogimos a cuatro personas de la calle. Y uno de ellos estaba en la condición más terrible-y le dije a las hermanas: Ustedes tengan cuidado de los otros tres, yo me ocuparé de éste que se vé peor. Así que hice por aquel hombre todo lo que mi amor pudo hacer. Le puse en la cama, y mostró una hermosa sonrisa en su rostro. Me cogió mi mano, mientras dijo una sola palabra: Gracias - y murió”
Morreu feliz?
De mãos dados com a condenação do aborto está a dos métodos contraceptivos artificiais. Madre Teresa não entende, ou finge não entender porque, se entendesse seu discurso ruiria, que, se a miséria não diminui como consequência do controle de natalidade, ajuda a não aumenta-la. Não compreende que, ao combater a miséria e fornecer os meios necessários à prevenção da gravidez indesejada, ajuda as pessoas, especialmente as mulheres, a serem donas dos próprios corpos e a planejar suas vidas como bem entenderem. A lógica de Madre Teresa é machista, submissa, irracional, deseja pobreza, violência e sofrimento à educação, autonomia individual e felicidade.
O que seria o “método da temperatura” para controle da natalidade? Porque chama os pobres de “nossos pobres”, como se fossem animais de estimação ou sua propriedade? Mantê-los na miséria seria a forma encontrada para manter o financiamento de sua “obra”, estratégia de marketing? Uma forma de expiação de culpa dos governos do “Ocidente”, que veriam na “santa das sarjetas” uma saída para a incapacidade ou falta de vontade para resolver a desigualdade social e econômica no interior de suas fronteiras?
E que papelão o da igreja católica, hein? O mundo em chamas e seu representante desperdiçando tempo, o dele e o nosso, com divagações metafísicas sobre a santidade de quem quer que seja. Um tributo ao obscurantismo e à ignorância em pleno século XXI.

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http://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/04/internacional/1472980683_884891.html

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