Sempre me chamou a atenção a ausência de sobrenomes
tradicionalmente associados aos judeus na seção de Cartas dos leitores dos
jornais de grande circulação nacional. O país e a cidade do Rio de Janeiro
pegando fogo, a violência urbana aumentando em progressão geométrica, as
políticas econômicas arrochando os salários dos trabalhadores, casos e mais
casos de corrupção em todas as esferas de governo, a reforma política que não vai
pra frente, impostos que oneram a já combalida classe média e muitas outras
notícias que influenciam o cotidiano da população e um silêncio sepulcral dos
judeus cariocas. Vai ver o editor é antissemita, penso eu sarcasticamente.
A situação muda de figura quando o assunto é Israel,
sobretudo quando há pronunciamentos de autoridades públicas criticando o Estado
judeu. Quem melhor para falar de “assuntos judaicos” do que judeus, não é? Chovem
cartas de leitores indignados, relembrando ad
nauseam o holocausto que dizimou seis milhões e o suposto antissemitismo de
quem se atreveu a criticar as políticas de discriminação e extermínio em longo
prazo dos palestinos sitiados em Gaza e na Cisjordânia. Nenhum pio sobre os
assentamentos ilegais nos territórios ocupados.
A guetificação intelectual voluntária de boa parte da
comunidade judaica do Rio de Janeiro sempre me incomodou. Comporta-se como um
pintinho que não rompe a casca do ovo, alheio ao ambiente externo, perigoso e
ameaçador. A carapuça não me serve. Sou ovelha desgarrada. Casei com uma não-judia,
uma goy. Traí a causa. Judeu
não-judeu. Self-hating Jew. Sou judeu brasileiro, não acredito que a cidadania
de um Estado deva ser adjetivada de forma alguma, étnica ou religiosamente. Estado
judeu ou Estado islâmico são, em minha opinião, aberrações jurídicas anacrônicas.
Religião e política não devem se misturar porque esta mistura implica,
inevitavelmente, em algum grau de discriminação ou restrição a quem não se
encaixa na categoria religiosa ou étnica que define a natureza estatal. A lei
pode até ser igual para todos, embora uns sejam mais iguais do que outros.
Acusa-se Marcelo Freixo, o candidato do PSOL – Partido
Socialismo e Liberdade à prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, de antissemita
ou, pelo menos, de dar guarida a correligionários que gostam de queimar bandeiras
de Israel. Nunca o ouvi proferir uma só palavra contra os judeus.
Ah, tudo bem. Mas o programa do PSOL é eivado de
antissemitismo!
E o que diz o programa do PSOL?
No item “Em defesa do internacionalismo ativo”:
“São tempos de agressão militar
indiscriminada do imperialismo. Os EUA se destacam como país agressor, que
agora chefia a ocupação do Iraque, intervém na Colômbia, no Haiti, promove
tentativas de golpes na Venezuela e apoia o terrorismo de Estado, de Israel
contra os palestinos”.
Há uma confusão, produzida e reproduzida pelos
próprios “representantes” da “comunidade” judaica, com consequências nefastas
para a própria defesa dos judeus contra seus reais inimigos, entre conceitos
distintos: judeu, israelense, sionista. Não são termos intercambiáveis. Posso
ser judeu não-sionista ou antissionista. Pode ser não-judeu sionista. Posso ser
israelense não-judeu (ainda que muitos defendam que o Estado seja exclusivo dos
israelenses judeus).
A crítica ao Estado de Israel, como se percebe, não é
um libelo contra os judeus, nem mesmo contra os israelenses de forma geral. É
uma crítica às políticas do Estado contra determinados grupos sociais, dentre
eles, os palestinos e os árabes-israelenses. Pergunte, por exemplo, aos judeus
emigrados de países africanos, de pele escura, como são tratados pelos judeus
descendentes de europeus de pele clara. A ignorância não se limita ao “diferente”,
o inimigo pode estar no interior das fronteiras do grupo do qual você,
ingenuamente, se sentia parte.
O cultivo do medo, ao desqualificar quem pensa
diferente através do estigma de antissemita ou traidor, fala muito do (baixo) nível
intelectual dos interlocutores, incapazes, muitos deles, de explicar o que é
sua própria identidade judaica. Parafraseando o mestre Da Matta, “o que faz do
judeu, judeu?”. O discurso do medo traz ganhos políticos e simbólicos, quem o
usa sabe muito bem disso, sobretudo os que almejam cargos públicos. Dá voto.
Você pode concordar ou não com a afirmação de que o Estado
de Israel é terrorista. Sim, eu acho que é e o atual governo pratica uma política
de extermínio, genocida, embasado na ideia da Grande Israel, apoiado por grupos
de nacionalistas laicos e religiosos. Como judeu, por menos que me importe,
Israel tem, contraditoriamente, importância nem que seja um contraponto da
forma como penso minha identidade judaica. Posso afirmar minha judeidade,
dentre outras formas, negando aquilo que não sou, embora isto não seja
suficiente. Não sou sionista. Respeito quem o é.
Uma vez dito isto, peço um favor aos que tão
acaloradamente questionam a integridade moral de Marcelo Freixo:
Vamos discutir o Rio de Janeiro, senhores?
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