Não, não estou enganado. O bispo licenciado da Igreja
Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella, foi eleito para a prefeitura da
capital de Israel, Tel Aviv. Ao menos, é a impressão que se tem ao analisarmos seu
discurso para dentro das fronteiras da comunidade judaica carioca.
Na entrevista dada à Federação Israelita do Estado do
Rio de Janeiro – FIERJ, antes das eleições do dia 30 de outubro, por ocasião de
sua participação em debate no clube judaico Monte Sinai, na Tijuca, zona norte
do Rio de Janeiro, o prefeito eleito, classificado pelo presidente do clube
como “grande amigo da comunidade”, falou, basicamente, de Israel e da relação
de Israel com o Brasil. Disse que já foi 35 vezes à terra prometida; que sua
ideia de reforma agrária é baseada na experiência socialista do kibutz; que
pretende usar tecnologia de segurança israelense para dar um pouco mais de
tranquilidade à população carioca acossada pela violência de traficantes e
milícias; que os laços entre Brasil e Israel são históricos (“têm tudo a ver”) desde
que um brasileiro presidiu a sessão da ONU que criou o Estado judeu. Crivella
também lembrou que foi autor de diversas leis que beneficiaram Israel no Brasil
“e, claro, a comunidade”: o fim da bitributação (não sou profundo conhecedor de
legislação tributária, portanto, gostaria de maiores informações sobre o
benefício deste fim da bitributação para a “comunidade”); a inclusão de Israel
no Mercosul (imagino que através de acordos comerciais); o Dia da Amizade Brasil
e Israel; a construção, no Rio de Janeiro, da maquete de Jerusalém, no bairro
de Del Castilho. Crivella afirmou, finalmente, que a prefeitura pode apoiar as
marchas a favor de Israel e que, “nesse campo, os evangélicos são campeões porque
ensinam a cultura da bíblia, os valores de Moisés”.
Crivella foi eleito com os votos de muitos judeus, que
estabelecem uma relação inevitável entre judaísmo, sobretudo sua vertente
religiosa, e Israel, a quem defendem incondicionalmente.
Em matéria publicada no site da revista Veja,
intitulada “Comunidade judaica foi decisiva para votação de Crivella em Ipanema”,
lemos:
Marcelo Crivella virou o jogo em Ipanema. No primeiro
turno, o bairro de classe média alta deu a ele o pior desempenho nas 94 áreas
de votação do município, com apenas 6,89% dos votos registrados ali. No segundo
turno, porém, Crivella venceu na região com 52,19% dos votos válidos. Foi
a única da Zona Sul a dar maioria ao candidato do PRB. Segundo um líder da
comunidade judaica do Rio, a inversão teve raiz nas polêmicas do PSOL com a
religião. Pelas contas dele, 37% dos eleitores de Ipanema são judeus, e não
gostaram de ver o ex-presidente de Israel Shimon Peres ser chamado de genocida
num blog ligado ao partido. Pegou muito mal também o vídeo em que o
vereador psolista Babá queima uma bandeira de Israel.
Alguns breves comentários a partir da entrevista de Crivella
à FIERJ e da matéria da revista Veja:
A comunidade judaica do Rio de Janeiro não precisa de
um “amigo” que a proteja, precisa de um governante que atue pelo bem-estar de
todos os cidadãos, categoria que acredito ser a principal aqui. A amizade está
no campo das relações pessoais, e a cidadania diz respeito ao espaço público,
da impessoalidade, princípio que deve nortear a atuação de autoridades em
sociedades democráticas republicanas. É hora de encararmos os judeus como
cidadãos como quaisquer outros, que não precisam de favores porque tem, como
quaisquer outros também, direitos e deveres. A figura do “judeu de corte” que
interceda junto ao governante ou do governante benevolente é anacrônica.
A fala de Crivella na entrevista concedida à FIERJ
estabeleceu uma relação de dependência entre os judeus cariocas e Israel e,
mais ainda, com a religião judaica, quando citou a maquete de Jerusalém
construída no bairro de Del Castilho. Limados foram, por exemplo, judeus não
religiosos que não dão muita importância à religião no seu dia-a-dia, judeus
ateus e judeus não sionistas. A propósito, a maquete está no maior templo
evangélico do Rio de Janeiro, em nada se relacionando, a princípio, com a
religião judaica.
A laicidade do Estado é ignorada ou fica em segundo
plano quando ouvimos que a “cultura da bíblia” pode favorecer a busca pelo
entendimento, pela paz. Sem dúvida, pode, entretanto, a cultura da tolerância,
do convívio com o diferente ainda que não gostemos muito dele e que possamos
criticá-lo veementemente (faz parte da democracia) independe de religião.
O apoio que a prefeitura do Rio de Janeiro dará a
eventuais marchas pela Paz de Israel também ocorrerá quando a demanda for por
marchas pela retirada das tropas israelenses dos territórios ocupados e pelo
fim dos assentamentos ilegais?
A falsa tranquilidade do gueto voluntário que muitos
judeus cariocas insistem em reproduzir no discurso e na prática, “farinha
pouca, meu pirão primeiro”, “cada um no seu quadrado”, “cabe um sabe onde lhe
dói o calo”, que se abstêm do debate mais amplo de defesa da diversidade
cultural, religiosa e sexual, sem qualifica-las, acaba por transformá-los em cúmplices,
algozes involuntários de políticas discriminatórias. E daí que Crivella é acusado
de homofobia e machismo? Contanto que defenda os “interesses da comunidade”,
estamos satisfeitos...
A matéria de Veja é, no mínimo, discutível. É difícil
de acreditar que mais de um terço dos eleitores de Ipanema é formado por judeus.
De onde o repórter tirou estes números? Quem é o “líder da comunidade judaica”
que lhe passou tais informações? Reforça-se, por outro lado, a relação estigmatizante
entre poder financeiro, judeus e “direita”, principalmente ao citar a queima da
bandeira de Israel por um vereador do PSOL, partido pelo qual concorreu Marcelo
Freixo à prefeitura do Rio de Janeiro. E novamente relaciona os judeus e
religião o que, um equívoco que muitos “representantes” fazem questão de
reproduzir.
As eleições municipais no Rio de Janeiro mostraram que
há um certo “voto judeu” legitimador, querendo ou não, da mistura entre religião
e política, abrindo as portas, já meio que escancaradas, para um retrocesso nas
relações entre sociedade civil e Estado. O Irã é logo ali.
Links:
O vídeo da entrevista de Crivella:
A matéria de Veja:
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