Conheceram-se num boteco desses da Lapa, uma
quinta-feira vadia. Ele chegou com aquele papinho de “você vem sempre aqui?”,
ela não deu muita bola, já passava de duas da madrugada e ambos, sozinhos,
ainda tinham esperança de sair dali acompanhados. Sua cartada foi falar do seu
gato vira-lata, estampado numa grande tatuagem na parte interna da coxa
direita, e da paixão por literatura, especialmente Saramago e sua narrativa de
tirar o fôlego, sem ponto, só vírgulas. Ela pensou “vou dar uma chance pra ele,
não transo há mais de um mês, vai que uma coisa (livros e gatos) leva à outra
(cama)...”.
As duas semanas seguintes foram de sexo intenso e
descompromissado, embora houvesse um pacto silencioso que proibia ambos de se
envolverem com terceiros, a menos que o terceiro viesse juntar-se ao casal, mas
não encontraram interessados por falta de prática nesses negócios devassos.
Realizaram fantasias sexuais uns nos outros, ele perdeu a vergonha e comprou
uns apetrechos na sex shop, envergonhado, mal podia olhar para a cara da vendedora
(tinha de ser mulher...) que explicava pormenorizadamente o funcionamento
daquele óleo (“tem de passar e esperar um pouco, ele esquenta a vagina”) e as
diferenças entre os montes de modelos de vibradores. Profanaram todos os cantos
do apartamento, sem esquecer, é claro, dos corredores do prédio (senso comum). Apaixonaram-se
e, arrependidos da sujeira pré-marital, afinal de contas, sexo é permitido
somente após o casamento, para fins reprodutivos e, por consequência, sem uso
de preservativos, resolveram casar. Aleluia.
Depois do cartório, a igreja. Ela entrou de branco,
disse que gostava da cor, mas também fazia questão de agradar os parentes que a
tinham como uma celibatária de marca maior, incapaz até de usar o espelhinho
para ver como é a própria genitália. O corpo é fruto do pecado, o ideal é ser
frígida. Tocar-se, jamais. Mulher direita, “pra casar”. Só não sabe cozinhar,
mas isso a gente dá um jeito. Juraram, na frente do padre, dos parentes, dos
amigos e de deus (ambos são “católicos não praticantes”), fidelidade, amar-se
na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, o que “Ele” juntou o homem não
separa. Presos por algemas invisíveis até que a morte os separe.
A lua de mel foi meio sem graça, não havia mais
curiosidade a ser desbravada, os corpos já estavam mais do que usados embora,
lavados, estivessem novos. Vai ver as escrituras estivessem certas, deviam ter
esperado a união religiosa para o início dos trabalhos de alcova. Mas o sexo
era bom e frequente. Ela tomava pílula, já havia abortado uma vez e não queria
passar perrengue novamente, não pelo aborto em si, mas pela criminalização da
prática por um Estado retrógrado, conservador, refém de pensamentos mágicos.
Um dia, voltando do trabalho, ela sofre uma tentativa
de assalto e, baleada na coluna, fica tetraplégica. No auge do vigor físico e intelectual,
executiva de uma grande firma de advocacia, passa a vegetar numa cama no
apartamento em que viviam, acompanhada em tempo integral por uma enfermeira
contratada a peso de ouro e por uma dessas maravilhas tecnológicas que ajudam a
prolongar a vida independente da vontade do indivíduo cuja vida não lhe
interessa mais. Corpo inútil. Ela queria morrer, a família disse “não”, o
Estado disse “não”, a Justiça disse “não”. Sadismo inimputável.
E o sexo? Adultério é pecado, na saúde e na doença, na
alegria e na tristeza. Chegaram a um acordo. No dia-a-dia, a masturbação seria
suficiente, “treino é treino, jogo é jogo”. De vez em quando, quando a libido
falasse mais alto, ele daria uma escapadinha e “cometeria o ato sexual”, tudo
muito respeitosamente, com alguma (ou algum?) que desse mole na noite, ou no
escritório. Apenas ela não queria saber nem quando, nem onde, que o fizesse
longe dos olhos, “o que os olhos não veem o coração não sente”. Há que se
escolher as batalhas, a moralidade é flexível, nem sempre o vento que venta lá,
venta cá, pau que dá em Chico, dá em Francisco. Nem sempre é preto no branco, o
certo e o errado é relativo, tudo depende do contexto, da perspectiva, é o
multiculturalismo, a pós-modernidade, a modernidade líquida. Explicações há
para todos os gostos, o importante é conseguir dormir o sono dos justos,
colocar a cabeça no travesseiro e contar carneirinhos.
O caso deles era extremo, havia limites, ora pois.
Homem com homem, mulher com mulher já era pouca vergonha, afinal, deus fez o
homem e a mulher anatomicamente compatíveis, sexo para procriação, casamento e
sexo como parte de uma unidade inseparável. Tá na bíblia. Entra em ação o
supermercado moral. Casamento por amor, adoção de crianças molestadas por pais
e mães “felizes para sempre” em casamentos “normais” está fora de cogitação. E
as referências paternas e maternas? As crianças vão crescer com sérios problemas
psicológicos, psicopatas, sociopatas, potenciais homicidas sem vínculos
afetivos. Deus nos livre. A heteronormatividade como norma. “Vai me dizer que
você não preferia que seu filho casasse como uma mulher?”, “Pra mim, tanto faz,
quero que seja feliz. Ponto”. “mas você não PREFERIA?”. “Não prefiro nem
desprefiro”. Silêncio. Mas uma bimbadinha fora de casa, ninguém é de ferro, não
faz mal.
Pois é, o problema são os ateus. Afinal, se deus não
existe, tudo é permitido...
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