Os
paladinos da moralidade e dos bons costumes, que estão se esforçando por
transformar o Brasil numa versão tropical de Estados alicerçados no fundamentalismo
religioso, negando direitos humanos, perderam uma importante batalha no dia de
ontem.
A maioria
da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal mandou soltar cinco médicos e
funcionários de uma clínica clandestina na Baixada Fluminense por entender não
ser crime a interrupção voluntária da gravidez até o terceiro mês de gestação,
decisão esta que abre um precedente inédito no STF sobre o tema do aborto. Em 2012, a
mais alta corte de justiça brasileira já havia decidido, em julgamento
histórico, se posicionar a favor da descriminalização do aborto de fetos
anencéfalos (sem cérebro). Na
próxima semana, está marcada a votação o julgamento da ação que pede a
liberação do aborto para gestantes infectadas pelo vírus zika.
No
acórdão da decisão, a maioria da Primeira Turma afirma que a criminalização é
incompatível com os seguintes direitos fundamentais: “os direitos sexuais e
reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma
gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de
fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante,
que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a
igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação
plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.
Sim,
é verdade que a decisão histórica de ontem não se aplica a outros casos, foi
apenas uma batalha numa longa guerra pela descriminalização do aborto. Meu
posicionamento sempre foi claro a respeito do tema, agora corroborado pelos
direitos fundamentais descritos pelos doutos magistrados: o corpo é da mulher e
ela pode fazer o que bem entender com ele, por mais que doa aos ouvidos dos
falsos puritanos e por mais que eu, em determinados casos, ache que a gravidez
poderia ter sido evitada, que o casal foi irresponsável, inconsequente.
A
decisão última pertence SEMPRE à
mulher. “Ah, mas já existe vida humana lá dentro”. Sim, exato, “lá dentro”,
dentro de outro corpo que o engolfa, portanto, a ele subordinado, submetido, é
sua propriedade porque não ganhou a autonomia da vida extracorpórea, não pode
ser considerado um indivíduo com direitos e deveres. Questões filosóficas à
parte, ok?
É
execrável o sadismo dos defensores da criminalização do aborto, sobretudo os
que se utilizam de argumentos religiosos, mas não só, também os que se utilizam
de discurso (pseudo) científico ao ignorarem o sofrimento físico e psicológico
das mulheres que se veem obrigadas a carregar, dentro de si, um ser desprovido
de cérebro, um ser fruto de violência física, um ser que sofrerá pelo resto da
vida as gravíssimas consequências da contaminação por um vírus como o da zika.
A gravidez e sua
interrupção são questões de saúde pública e é neste campo que a discussão deve se
restringir, religião e filosofia não devem meter a colher. Educação sexual e
distribuição de contraceptivos são instrumentos importantes na prevenção de
gravidezes indesejadas, entretanto, não podem justificar a proibição da
interrupção da gestação - “nós demos as informações necessárias, você não quis,
não ouviu, agora aguente as consequências” - caso este seja o desejo da mulher,
a qualquer tempo (por que apenas nos três primeiros meses?). Cabe ao Estado
fornecer os meios para que os procedimentos abortivos sejam realizados em
ambiente asséptico e seguro.
O resto é
conversa fiada de carolas e saudosistas do Papa Ratzinger. Lembram-se dele?
Comentários