Há uma ideia idílica de que o multiculturalismo seria a
solução mais fácil e óbvia para todo tipo de preconceito, de que sociedades
caracterizadas pelo convívio entre manifestações e identidades culturais distintas
é a evolução “natural” da condição humana. De fato, o convívio com o diferente,
com aquilo que costumeiramente consideramos o “errado” ou o “estranho” deve ser
o objetivo máximo de qualquer sociedade, mas os partidários do
multiculturalismo e seus oponentes partem, geralmente, de concepções
equivocadas do que ele seja. Os defensores acabam caindo no discurso da “cultura
legítima e original”, rotineiramente estabelecendo fronteiras simbólicas
estanques, impermeáveis, essencializando características arbitrariamente eleitas
como “verdadeiras”. Resumindo: negro tem samba no pé, branco toca violino.
No anseio de defender identidades historicamente
marginalizadas ou recentemente “descobertas”, acabam se comportando de maneira
semelhante aos oponentes da ideia do multiculturalismo que veem, no diálogo
entre os diferentes, uma ameaça à própria sobrevivência. Os oponentes não
compreendem que o contato com o “outro” dinamiza internamente sua concepção de
mundo, não compreende que a cultura é um “ativo” em constante atualização, aí
está a riqueza humana, sua plasticidade, sua flexibilidade, sua capacidade de se
repensar. Ser humano é ser incompleto. Ademais, o multiculturalismo é, por
natureza, eivado de tensões. Ninguém tem a menor obrigação de gostar daquilo
que vê ou ouve. Ninguém é obrigado a gostar de um casal homossexual se beijando
num bar, ninguém é obrigado a gostar de um casal heterossexual se beijando num
bar. O multiculturalismo exige o respeito à existência do pensamento alheio,
embora o multiculturalismo implique, inevitavelmente, o debate entre
pensamentos distintos e, muitas vezes, antagônicos e irreconciliáveis. A
sociedade que se quer multicultural não é um conto de fadas.
Um exemplo tupiniquim desta batalha ideológica é observado
no debate sobre o uso de animais numa série de atividades. E digo atividades
porque, para os críticos, tais atividades não podem ser consideradas manifestações
culturais, esportivas ou científicas. Algumas polêmicas recentes são as
seguintes:
No início de outubro deste ano, o Supremo Tribunal
Federal definiu que a vaquejada - prática que se caracteriza por um vaqueiro,
montado num cavalo, derrubar um boi pelo rabo em área previamente demarcada - é
inconstitucional. Imediatamente, deputados elaboraram projetos de lei e
propostas de emenda constitucional defendendo a prática, por exemplo, como
manifestação cultural nacional. Um dos projetos cita, inclusive, “uma frase do
renomado sociólogo Gilberto Freyre” para quem “os grandes mitos humanos
históricos nordestinos são o jangadeiro do litoral e o vaqueiro do sertão”. Se
não houver medidas cautelares ou Ações Diretas de Inconstitucionalidade, a
vaquejada poderá ser permitida no país. Os críticos da prática afirmam que o
animal sofre maus-tratos.
No ano passado, uma deputada do Rio Grande do Sul
apresentou um projeto de lei estadual que proibia o uso de animais em rituais
religiosos. Os defensores da proposta se diziam a favor da liberdade de culto condicionando-a
ao “respeito à vida”. Uma voluntária de ONG que defende os animais afirmou, à
época, que os religiosos poderiam “fazer outro tipo de trabalho que não
sacrifique a vida”. Na sua justificativa, a deputada alegou que o sofrimento
causado aos animais seria uma “questão de saúde pública” devido à sua decomposição
em locais públicos, “inclusive o de
seres que nossa cultura sequer assimila como alimento” (grifo meu). Do outro lado, as instituições
dos Povos de Terreiros, na audiência publica promovida pela Frente Parlamentar
contra o Racismo, a Homofobia e outras formas de Discriminação, questionaram a constitucionalidade
do projeto e afirmaram que a deputada autora do projeto de lei “estaria a
serviço de outras religiões”, uma vez que é evangélica e que a proposta “perseguia”
os Povos de Terreiro. Uma mãe-de-santo ironizou: “E acabou o peru no Natal”. O
projeto de lei foi, posteriormente, rejeitado pela Assembleia Legislativa
gaúcha.
Em 2013, um grupo de ativistas invadiu um laboratório no
interior do estado de São Paulo e retirou dezenas de cães da raça beagle que,
segundo eles, sofriam maus-tratos e eram usados em pesquisas e testes de produtos
cosméticos e farmacêuticos. Uma denúncia anônima havia alertado que os cães
estariam sendo sacrificados com métodos cruéis e que os corpos estariam sendo
ocultados em um porão. Uma integrante do Movimento Frente Antivivisseccionista
do Brasil afirmou, na ocasião, que foram ouvidos "vários gritos de
cães" no local, indicando "que os animais estavam sendo submetidos a
tratamentos cruéis" e que "sentiam muita dor". Há argumentos
contrários e favoráveis ao uso de animais em pesquisas científicas. Afirma-se,
por exemplo, que testes em laboratórios causam sofrimento, ferimentos e
transtornos psicológicos nos animais, inclusive, uma corrente de
neurocientistas sugere que animais não humanos possuem substratos neurológicos geradores
de consciência e comportamentos intencionais, ou seja, sentem dor. Por outro
lado, argumenta-se que os
testes com animais são submetidos a comitês de ética, enfatizando-se o não
sofrimento ou dor.
A expressão “manifestação cultural” pode ser salvo-conduto para toda e
qualquer atividade humana? Há um padrão ético mínimo a ser seguido? Quem o
define? A Ciência deve ser entendida como manifestação cultural e, portanto,
passível de crítica? Como conciliar interesses carnívoros e vegetarianos? Liberdade
religiosa e direito dos animais? Até onde a crítica a determinadas práticas faz
parte do debate ideológico e a partir de que momento passa a ser uma
estigmatização do “outro” (“nossa cultura”, nas palavras da deputada gaúcha) e
uma visão etnocêntrica do mundo?
A propalada globalização e o multiculturalismo que lhe
é inerente traz, inegavelmente, a vantagem de travarmos contato com um
admirável mundo novo, inicialmente exótico, comida japonesa antes da popularização
dos sushis e sashimis. Consequência também inevitável do rotineiro e cada vez
mais intensa contato entre visões de mundo e expressões simbólicas distintas de
nossa “casa”, de nosso ambiente seguro doméstico, é a luta pela definição do
que pode existir e o que não pode existir neste mundo infinitamente diverso
culturalmente.
E a bicharada permanece apreensiva, tipo “A Fuga das
Galinhas”.
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