A bolha

O livro, a leitura, a literatura, os jornais sempre estiveram presentes na minha vida familiar. Há certas imagens definitivamente gravadas na memória. Meu pai sentado na cadeira de balanço do jardim de inverno do nosso apartamento das Laranjeiras, lendo A Folha de São Paulo e O Globo e os livros dos autores preferidos. Minha avó materna recostada em sua cama, devorando os romances de Danielle Steel, que pegava emprestados da biblioteca do Instituto Brasil-Estados Unidos, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, ajudada eventualmente pelo dicionário polonês-inglês/inglês-polonês de capa amarela. Meu avô materno que, por dever de ofício - jornalista e correspondente, no Brasil, de alguns periódicos estrangeiros – e, obviamente, por gosto, estava sempre lendo alguma coisa, seja na poltrona da sala, seja na cama, à noite, ao deitar-se, acompanhado da indefectível música clássica da rádio MEC.  


Lia-se muito e em vários idiomas: português, inglês, espanhol, polonês, iídiche, hebraico. O iídiche, dialeto falado pelos judeus do leste europeu, com suas letras hebraicas, dava nome aos inúmeros livros da biblioteca dos meus avós maternos. Também era em iídiche que rotineiramente conversavam com seus amigos poloneses que lhes vinham visitar no apartamento da rua Tonelero. Essa babel conformava um cosmopolitismo que sempre me agradou, a ideia de transgressão de fronteiras e diálogo entre identidades, o embate de distintas leituras do mundo, atualização da figura do judeu errante, que está em todo lugar e em lugar algum, que está nos interstícios, dentro e fora. Acho que sempre me fascinou a ideia de transitar por distintas "províncias de significado", exercendo identidades caleidoscópicas. Ser "sujo" no sentido de estar "fora do lugar", ou ser um "flaneur" que transita por todos os lugares, é familiar e estranho ao mesmo tempo. A exaltação da diversidade cultural, da riqueza simbólica que é a experiência humana. A leitura pode não ser o antídoto contra a intolerância, mas nos mostra que o mundo pode ser lido de muitas maneiras.  


A faculdade de Ciências Sociais me ensinou a estranhar o familiar e a familiarizar-me com o "outro". Aprendi a relativizar pretensas verdades e a colocar-me no ponto de vista do "nativo", compreender o porquê de ele pensar do jeito que pensa, embora eu pense diametralmente oposto. Um dos primeiros textos que li em Introdução à Antropologia se chama "Os Sonacirema", uma tribo indígena com hábitos e práticas estranhíssimas. A descrição nos fazia rir. Então, líamos "Sonacirema" de trás para frente e descobríamos que a tal tribo éramos nós, os "Americanos", descritos densamente por alguém de fora, isento de preconceitos endógenos, comprovando que a normalidade e o desvio são conceitos relativos e depende de quem fala, para quem fala e com quem fala. O antropólogo como intérprete da sociedade. Uma década de êxtase intelectual intramuros. Alguns pais de colegas do meu filho me apelidaram carinhosamente de "Gabeira", uma espécie de "maluco beleza" sempre com aquele papo-cabeça de relativizar a tudo e a todos, como que entorpecido pela ideia de um mundo inatingível. Uma figura quase inofensiva, boa pra jogar conversa fora num churrasco, mas alheio à realidade assim como ela é.   


Então, veio o Ministério da Cultura e Gilberto Gil e sua ideia de "do-in antropológico" que era como uma massagem em pontos culturais "adormecidos" da sociedade brasileiro, metáfora da marginalidade e esquecimento sofridos por muitos grupos sociais e que, a partir de então, veriam respeitados seus direitos culturais, garantidos mesmo pela Constituição Federal de 1988. Gil trouxe para o meio da discussão a centralidade do conceito de cidadania cultural. Havia, no MinC, a Secretaria da Identidade e Diversidade. Pela primeira vez, editais foram elaborados "do ponto de vista nativo", a inscrição podendo ser feita oralmente, por quem não sabe ler e escrever. Indígenas, negros, fazedores da cultura popular, LGBTQI tornados visíveis por políticas públicas inclusivas e democráticas.  


Para mim, o Brasil que daria certo era esse. Humano. Era como se eu estivesse vivendo um sonho, ou vivesse numa bolha. Asséptica, protegida da violência, da dor, da intransigência, da intolerância, do sofrimento, da maldade, da morte, da ignorância, da imoralidade e da estupidez intelectual.  


Mas a bolha estourou. Ouvi gente próxima defender a ditadura militar e negar o terrorismo de Estado, relativizando o uso da tortura como prática institucionalizada, apenas contra aqueles que haviam "feito alguma coisa", ou seja, mereciam. Fui apresentado a gente que exibe abertamente, orgulhosa, sua homofobia e misoginia, desdenhando da luta das mulheres por direitos iguais, afinal, são todas essas "umas mal comidas". Gente que nega o machismo estrutural porque, ora vejam, não há Dia Internacional do Homem. Gente que diz que "chinês é tudo imundo mesmo". Gente que nega a ciência. Gente que acha que ensinar sobre as capitânias hereditárias e interpretá-las como o embrião da luta pela reforma agrária no Brasil é "doutrinação socialista". Gente que chama de assassina uma criança de dez anos estuprada e que decide abortar. Gente que acha que a "minoria" deve se "curvar" à "maioria". Gente que acha que nazismo é "de esquerda". Gente que acha que, aos poucos, os "índios" estão ficando como "nós", os civilizados.  


Essa gente sempre existiu, é claro. O que mudou é que, agora, estão despudorados, não tem qualquer vergonha de assumirem quem são. Escória. Não à toa, a carga horária de disciplinas como antropologia, sociologia e filosofia diminuiu no currículo das escolas estaduais do Paraná, por exemplo, enquanto o projeto de militarização do ensino é imposto goela abaixo. Ensinar a pensar é perigoso. Gera autonomia, liberdade, independência, alegria, gozo, felicidade. É a vida na bolha, do dicionário amarelo inglês-polonês, da cadeira de balanço, dos "Sonacirema", do Gil, do "Gabeira".  


Estou doente de Brasil, sim. Coloco o Chico Buarque e começo a chorar. Olho pro meu filho às portas da adolescência, moleque bom de cabeça e de coração, e tenho vontade de encerrá-lo numa redoma de vidro, protegê-lo dessa realidade tão cruel e mesquinha que vivemos hoje nesse triste país. Não vai resolver o problema, eu sei, é o óbvio ululante, mas é o que me vem à cabeça. 


Eles venceram a batalha. A guerra é nossa, né, Belchior?  

"Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro"  



Comentários

Raymundo de Lima disse…
Realmente me identifiquei contigo. Tb fico triste e com atitude de desistência, que talvez lembra a do personagem "Baterbly, o escriturário", de Merville. Costumo dizer que desde 2017 passei a sofrer de DDD: desilusão, desencanto e desesperança. Que fazer? Raymundo de Lima (UEM/Rev.REA).
Sandra Pinto disse…
Marcelo, seu texto me flechou. Perdemos a batalha mas não a guerra. Esse jogo vai virar. Lembrei dessa música do Ivan Lins.
"Desesperar, jamais
Aprendemos muito nestes anos
Afinal de contas, não tem cabimento
Entregar o jogo no primeiro tempo
Nada de correr da raia
Nada de morrer na praia
Nada, nada, nada de esquecer
No balanço de perdas e danos
Já tivemos muitos desenganos
Já tivemos muito que chorar
Mas agora acho que chegou a hora
De fazer valer o dito popular"
paula nogueira disse…
Marcel, sinto tb uma decepção e uma desilusão abissal com esse Brasil atual... Dói saber como pensam essas "pessoas próximas"... acho que ando horrorizada com gênero humano. Antes achava que a vileza e a perversidade era coisa de uma minoria, hoje vejo que estava enganada. Como 57 milhões elegeram este horror que aí está e 34% ainda acham que é isso mesmo, apesar do genocídio, da destruição do país, da fome, do desemprego...???
Parabéns pelos seus textos. Gosto muito de lê-lo. É um alento!