Os judeus e as eleições

Fiquei cá com meus botões pensando sobre o porquê de judeus votarem em candidatos que representam o conservadorismo moral, a defesa de fronteiras, a construção de muros, se não físicos, ao menos simbólicos, entre identidades equivocadamente entendidas como irreconciliáveis. Logo judeus, que sofreram ao longo dos séculos o estigma da errância, do indivíduo que não pertence a lugar algum, que se move entre as fronteiras, condição esta que, hoje, ganhou, em minha opinião, sentido positivo. Somos, todos nós, cidadãos do mundo, judeus errantes, visitantes voluntários das mais distantes e, teoricamente, antagônicas “províncias de significado”. A condição judaica é a condição da pós-modernidade. Somos múltiplos. Logo os judeus, que costumam (ou costumavam...) responder a uma pergunta com outra pergunta, cuja situação de liminaridade sempre permitiu questionar verdades absolutas, desafiar a obtusidade das ditaduras ideológicas, resolveram trair a defesa da liberdade de pensamento pelo complexo de gueto, pela eterna vitimização, pelo paternalismo de um “amigo” que lhes possa defender dos ataques dos “outros”, aliando-se aos “inimigos dos nossos inimigos” na vã esperança de ver seu futuro étnico garantido. Crivella no Rio de Janeiro, Trump nos Estados Unidos.  Israel como referência simbólica da pátria ancestral, o antissemitismo sempre à espreita, distinto essencialmente de outros preconceitos, merecedor de atenção especial. A seletividade moral na defesa da existência do diferente. Homossexuais, muçulmanos, negros, “comunistas”, ateus, mulheres, virem-se, suas questões não me dizem respeito.

Citei os “comunistas”, e acho que uma das possíveis respostas à guinada para a extrema-direita por parcela dos judeus cariocas - imagino que, esquizofrenicamente, tenha havido quem depositasse suas esperanças no filho de Jair Bolsonaro, conhecido por seus discursos favoráveis a torturadores e à ditadura militar - e dos judeus norte-americanos seja a sua condição de classe. Há, sem dúvida, uma ojeriza à palavra “esquerda”, associada, ao longo da campanha eleitoral no Rio de Janeiro, ao que há de mais “retrógrado” e “radical” na política, sem maiores explicações sobre o significado destas categorias de acusação que saiam do senso comum da “ditadura comunista”.

Os pontos que gostaria de destacar são estes: há um discurso hegemônico, oficial ou não, nas comunidades judaicas brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, que instiga o medo atávico de um antissemitismo sempre na esquina a atacar; que estabelece uma relação inevitável, inexorável e inextricável entre identidade judaica e Israel; que relaciona automaticamente críticas ao governo israelense ao caráter antissemita do interlocutor; que demoniza a “esquerda” por considera-la a porta-voz do antissemitismo; que ignora o crescente conservadorismo moral da sociedade brasileira, colocando em perigo a diversidade cultural e sexual e a própria liberdade de expressão dos brasileiros, em nome de interesses de classe abafados pelo discurso da defesa das fronteiras étnicas.

Ser judeu é ser diverso. Há judeus com grana, judeus remediados, judeus sem grana, judeus conservadores, judeus progressistas, sionistas, não sionistas, heterossexuais, homossexuais, brancos, morenos jambo, negros, de direita, de esquerda, rubro-negros, tricolores, vegetarianos, carnívoros, religiosos, ateus, sambistas, metaleiros, engenheiros, médicos, antropólogos, poetas. Portanto, é preciso que os judeus que não se sentem representados, ou melhor, se sentem aviltados pelo discurso do medo, do ódio, do fechamento ao diálogo e da exclusão do diferente por ser diferente, que defende o retrocesso nos direitos civis, comecem a gritar para serem escutados porque legitimados estão para isso.


Não somos poucos.

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